Silêncio e Intimidade

Dr. João Seabra Diniz
 

Duas pessoas só podem construir um verdadeiro sentimento de proximidade a partir da riqueza da experiência interior de cada uma, e com a clareza do que se sente e do que se é.

0
Comments
2256
Read

Ao pensar em intimidade, creio que, em geral, a esse pensamento estará associado um sentimento de tranquilidade, de bem-estar, de paz interior. A intimidade será, assim, um bem que se deseja. Como é que poderemos, então, descrever esse bem e consegui-lo?
 
Para falar sobre intimidade é necessário compreender a pessoa. E a primeira ideia que ocorre é a de que a capacidade de intimidade começa com a boa qualidade do contacto com o nosso mundo interno, com a nossa experiência de intimidade com nós mesmos. Em paz. Em paz com as nossas memórias e com os nossos sentimentos. Com as nossas certezas e com as nossas dúvidas, com a experiência daquilo que possuímos e com o desejo daquilo que ainda não alcançámos. Em paz com o sentimento da limitação do que conhecemos e com o desejo de descobrir aquilo que ainda não sabemos.
 
É um ponto de chegada que não é fácil. Para o compreendermos é importante não esquecermos o enorme e constante desafio  que para nós representa a percepção do mundo externo e de tudo o que nos rodeia, onde têm lugar preponderante os outros seres humanos
 
Considero que a capacidade de estar só é o fundamento da capacidade de estar bem, em intimidade, com alguém. E a capacidade de estar só exige uma certa forma de viver o silêncio.
 
Tudo começa no princípio, na relação da mãe com o bebé, que organiza a relação que a criança em crescimento estabelece com o mundo, a partir do enorme impacto sensorial que o nascimento representa. Esta experiência inaugural é acolhida e mediada pela mãe, atenta a compreendê-la e a responder-lhe de forma harmoniosa, oportuna e sensível.
 
Nasce, assim, a situação a que se convencionou chamar  “satisfação alucinatória do desejo”, que  inicia a construção da pessoa e o vasto processo de conhecimento do mundo.
 
Para cada desconforto sensorial do filho, seja ele a necessidade de alimentação ou qualquer outra, a mãe, “sentindo o que ele sente”, traz-lhe a solução que permite reencontrar o “ bom estado”. Com a repetição deste encontro entre os dois – encontro de intimidade –  podemos imaginar que o bebé, quando sente de novo o mesmo desconforto, deseja reencontrar satisfação obtida “no passado”, que a mãe, atenta, lhe traz no “presente”. Tudo isto numa sintonia entre a voz da mãe e os cuidados que lhe presta e as reações do bebé e os sinais por ele emitidos.
 
O nosso mundo interno teve o seu início na experiência do contacto com um outro, quando a nossa história começa, quando o silêncio é quebrado por uma voz que nos fala.
 
A psicanálise tem uma riquíssima teorização destes processos fundamentais do desenvolvimento, que é a minha referência, no que aqui vou dizendo. De entre muitos trabalhos que poderia citar, refiro o capítulo “L’Originaire dans la Psychanalyse” no livro de André Green “La Diacronie en psychanalyse”.
 
A experiência inicial começa por ser uma vivência sensorial, que vai adquirindo uma dimensão mental ou psíquica, a partir dos registos da memória, e da elaboração imaginativa (Winnicott) das vivências recordadas, que se vai fazendo a pouco e pouco. É neste processo de registo do vivido e do que sobre ele se vai “pensando”,  que a criança pequena acaba por descobrir o outro, que serve de intermediário entre ela e o mundo. Inicialmente este outro é, para ela, todo o resto do mundo.
 
A experiência individual primitiva começa, então, a organizar-se sob a forma de relação, que é uma forma especificamente humana de contacto, com características muito diferentes dos fenómenos de vinculação animal.
 
Na continuidade  da experiência da relação, a criança inicia um processo de  conhecimento de si mesmo que depende da reação humana global que o adulto – em princípio, a mãe e o pai – têm perante ela, especialmente da qualidade dos afetos que lhe dirigem, das qualidades que lhe atribuem e da percepção que dela têm como ser humano em desenvolvimento, para o qual imaginam um certo tipo de futuro.
 
O outro é descoberto como distinto e diferente, mas semelhante, a partir do momento em que a criança começa a aperceber-se de que o adulto tem um mundo interno semelhante ao seu, isto é, feito de sentimentos e de desejos, de estados de prazer e de sofrimento. Portanto, vivendo uma experiência como a sua.
 
Com este outro estabelecem-se contactos significativos e organiza-se um sistema de comunicação, que começa pela troca de afetos e de fantasias e vem mais tarde a incluir a expressão verbal.
 
Quando os contactos começam a ser significativos, surge espontaneamente um sistema de comunicação, inicialmente dirigido a proporcionar o bem-estar, a satisfação dos desejos  e a evitar o desprazer.
 
A troca dos afetos é um elemento fundamental para conseguir o prazer de uma relação humana. Cada um tem uma ideia de qual é o afeto que dirige ao outro, e de qual é o afeto que o outro lhe dirige. E a criança vai, assim, formando uma ideia do tipo de pessoa que ela própria é, e do tipo de pessoa que o outro é. E isto a partir do que sente que é para o outro e do que sente que o outro é para si.
 
De um modo mais geral podemos dizer que, desde que começamos a existir os contactos de vária ordem que estabelecemos vão ficando registados, constituindo um depósito de memória, que conduz a uma aprendizagem. Aprendemos a conhecer-nos a nós próprios e ao ambiente que nos rodeia.
 
Mas de tantas coisas que aprendemos neste mundo, só nos são verdadeiramente úteis aquelas que, além de as sabermos, conseguimos também sentir. Essas passam a fazer parte de nós, e contribuem para que sejamos aquilo que somos, isto é, contribuem para a nossa experiência pessoal. As outras coisas que sabemos, mas que ficam distantes do que sentimos, representam um conhecimento, mas nunca se tornarão uma sabedoria. Porque as coisas sabidas só ganham  sentido depois de sentidas. Refiro-me ao seu sentido humano mais profundo.
 
As coisas “sabidas” porque “sentidas” podem ser assimiladas em profundidade e permitem-nos aprender – no sentido mais fundo da palavra – com a experiência. Este saber passa a constituir um património pessoal que não se perde, mesmo que as ações externas a que se ligava tenham que ser abandonadas. Fica como uma riqueza pessoal adquirida. Torna-se uma nova capacidade, aberta a outras aquisições.
 
A experiência vivida e pensada faz a originalidade da pessoa. É indispensável para que não se percam os frutos do tempo vivido, e assim o desenrolar da vida possa constituir um processo coerente. A memória partilhada torna-se um património de emoção e sabedoria, que se gosta de guardar e transmitir.  Um processo vivido como história, que se pode contar e com a qual se pode aprender.
 
Mesmo os conhecimentos mais pretensamente objetivos passam por uma vivência interior do sujeito, sujeito narrante e pensante, sujeito de toda essa experiência interior continuada, que fornece o pano de fundo emocional em que esse ato de conhecimento se insere e adquire a sua verdadeira dimensão pessoal. Pessoal e comunicável. O partilhá-lo dá-lhe um novo estatuto de objetividade, a partir da convicção de que podemos falar, com outro, da mesma coisa, com razoável aproximação.
 
No desenrolar de todo este processo, desenha-se com progressiva clareza o sentimento de que essa experiência é comunicável. Partilhável numa relação de intimidade.
 
Tornava-se necessária esta breve apresentação do que poderíamos chamar uma história do mundo interno, para podermos falar da intimidade com uma outra pessoa, isto é, com o mundo interno de um outro. Nesta vivência da intimidade, esse outro é sentido como diferente mas ao mesmo tempo semelhante. Não se trata de dar novidades mas de comunicar e partilhar uma experiência interior.
 
E volto à ideia de que a capacidade de estar só é um pressuposto  da construção da intimidade com uma outra pessoa.
 
Mas é importante perceber que nunca se está só mesmo quando se está sozinho. Porque se está perante o próprio mundo interno, povoado por um complexo conjunto de sentimentos, memórias e experiências, tudo organizado num conjunto mantido em unidade coerente pelo próprio sentimento de identidade, tudo vivido como uma história pessoal.
 
Assim o compreendeu Sophia de Mello Breyner quando, ao falar de Búzio, pescador solitário, estático na praia, de olhar perdido, comentou: “No alto da duna, o Búzio estava com a tarde”. Não estava só, portanto.
 
Duas pessoas só podem construir um verdadeiro sentimento de proximidade a partir da riqueza da experiência interior de cada uma, e com a clareza do que se sente e do que se é. A sensação vivida desta clareza recíproca permite um conhecimento tranquilo e uma comunicação eficaz, sem confusão de pessoas.  Constrói uma relação de intimidade.
 
É a partir daqui que o desejo de comunicação com outro se torna presente. É um desejo de falar e um desejo de escuta que leva à experiência de proximidade, de semelhança, de sintonia, como que escutando em conjunto uma mesma música interior, que é a ressonância afetiva da experiência vivida. É um viver em paz e com prazer a diferença, a partir da consciência da semelhança.
 
Esta experiência de comunicação na intimidade pode ser desejada e vivida intensamente. Os místicos falam dela de forma apaixonada, como representando o encontro com o seu único objeto de desejo. É famosa a frase de Santo Agostinho, afirmando que Deus é o mais intimo da sua intimidade. (Interior intimo meo  - more inward than my innermost).
 
O encontro de intimidade com outro, para ser verdadeiramente satisfatório, supõe a disponibilidade para a descoberta e a capacidade de escuta, que, por sua vez, parte da experiência apaziguadora do encontro com um bom objeto de satisfação interno, o que permite a serenidade e a alegria.
 
A intimidade exige saber ouvir e saber-se ouvido. Exige uma percepção positiva do mundo interno do outro, o que se faz no silêncio. O silêncio é a linguagem dos íntimos, quando não é um vazio, mas  um silêncio vivo, porque cada um sabe o que o outro sente ou pensa, e por isso não é preciso preencher com palavras um espaço que seria inquietante entre duas pessoas, na ausência de uma intimidade verdadeira. É no silêncio que ouvimos a vozes do passado. Da qualidade destas vozes depende a qualidade da intimidade que se estabelece, na continuidade das experiências anteriores.
 
Qual é a relação da intimidade com o amor? Não é simples a resposta. Este tema complexo não pode ser tratado aqui, mas deixarei alguns breves apontamentos.
 
Antes de mais, é importante dizer que a  intimidade inclui uma dimensão de afeto, que enriquece a proximidade e dá uma qualidade pessoal à experiência que se vive. E o amor deseja esta proximidade. Não tenho dúvidas de que uma boa relação amorosa exige a intimidade. Mas uma boa relação amorosa deste tipo, que dura e cresce com o tempo, não creio que seja a situação mais frequente.
 
O amor é uma dimensão muito complexa das relações humanas, embora seja, com certeza, a mais desejada. A literatura mundial abunda em histórias de amor, muitas delas acidentadas e difíceis. Porque o amor inclui, quase sempre, um desejo de posse exigente, por vezes egocêntrico, que complica a relação.
 
Depois, deve distinguir-se do amor o “estado amoroso”, ou estado de paixão. O estado amoroso organiza-se a partir de uma forte  idealização do outro, que aparece com enorme vivacidade como sendo tudo aquilo que sempre se desejou e que consigo traz tudo o que pode proporcionar a felicidade. É intensa a sensação de que se conseguiu um bem que durará para sempre e que nada nos poderá tirar, o que nem sempre é verdade. Daqui a conhecida afirmação de Vinicius de Morais, carregada de ironia mas traduzindo uma realidade forte, de que o “Amor é eterno enquanto dura”. A exaltante sensação de intimidade que acompanha o estado amoroso também pode terminar abruptamente.
 
Quando termina o estado amoroso, ao cessar a exaltação que lhe está associada, o amor poderá manter-se no caso em que a realidade de  cada um permite ao outro manter uma certa idealização partilhada, que consiste em valorizar afetivamente as reais qualidades da pessoa amada, e na convicção de que, em conjunto, se tem um bem cujo valor se reconhece e não se quer perder.
 
Com certeza que outros falariam da intimidade de maneira diferente. Mas esta é a maneira como eu falo, hoje, da intimidade.
 
Lisboa, Fevereiro de 2017
 
Referências
Andresen, Sophia de Mello Breyner, Homero, Contos Exemplares, Livraria Morais Editora.
Green, André, La Diachronie en psychanalyse, Les Éditions de Minuit, Paris, 2000.
Santo Agostinho, Confissões, Livro III.
 

Mais artigos de: