Alguns subsídios para a compreensão da violência na (e da) comunidade cabo-verdiana em Portugal

Sr. Filinto Elísio Correia e Silva
 

A violência, em todas as suas formas e todos os seus conteúdos, é um fenómeno antropológico e gizada sempre da perspetiva humana.

0
Comments
339
Read

A violência, em todas as suas formas e todos os seus conteúdos, é um fenómeno antropológico e gizada sempre da perspetiva humana. Assim, ela tem causas e consequências psicológicas, mentais, físicas, sociais, culturais, económicas, políticas e filosóficas, entre outros vários prismas que se lhe podem aportar (e, de certa forma, apontar). Por conseguinte, ainda sem entrarmos em dinâmicas críticas e de valoração, decorrentes  das circunstâncias e das condicionantes, alerta-se para a não retirada desta questão do bojo antropológico, em lato senso.
 
Fechando o foco e alargando o plano, pretende-se neste artigo abordar alguns fatores históricas e existenciais, bem como os da cultura e da identidade, que explicam (ou pelo menos afloram para o afrontamento das análises) comportamentos e atitudes de violência dos imigrantes cabo-verdianos em Portugal. Todo o processo migratório comporta múltiplas variáveis, sendo stress a mais evidente e, nalguns casos, capazes de bloquear a capacidade adaptativa, provocando nos migrantes perturbações emocionais.
 
Ciente de que qualquer comunidade imigrada sofre a violência inerente do estar obsceno (literal e presumidamente fora da cena), os imigrantes nos países de acolhimento estão à partida fora do lugar e, na maioria dos casos, não harmoniosamente integrados. Os imigrantes cabo-verdianos e seus descendentes, pois já há segundas e terceiras gerações nascidas em Portugal, não constituem exceção e encaixam-se perfeitamente nos segmentos marginalizados e ostracizados pela sociedade.
 
O migrante cabo-verdiano é confrontado assim a duas elaborações essenciais que giram em torno da perda e do ganho, permanente e interativo, das referências culturais e da identidade. As permanentes mudanças físicas (novo meio, nova habitação), mudanças biológicas (alimentação), mudanças sociais e familiares, mudanças culturais, políticas e psicológicas (identidade individual e cultural) criam frequentemente desajustamentos psicossociais e culturais; rotulagem e estigmatização.
Por conseguinte, não será por acaso o enorme índice de criminalidade nesta comunidade imigrada e nem ausente de casuística que a população prisional em Portugal tenha uma significativa presença de cabo-verdianos. As estatísticas prisionais da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) relativas ao terceiro trimestre de 2015 indicam que, num total de 14.237 reclusos, 17,3 por cento deles são estrangeiros, sendo as nacionalidades mais dominantes os oriundos de Cabo Verde (31,1%), seguido pelo Brasil (13,7%).
 
Salta à vista, a confirmar muitos estudos feitos, que a maioria dos crimes por que estão condenados prende-se com o tráfico de drogas, assaltos à mão armada, brigas entre grupos juvenis rivais e violência doméstica, quando não casos de indocumentados e em situação migratória irregular, enfrentamentos com a polícia e desacatos às autoridades.
 
A frequência estatística da população prisional cabo-verdiana e a tipologia dos crimes que lhe é reputada indiciam uma circunstância social bem caraterizada e uma forma de ser e de estar de ambiência desviante e disfuncional. Crê-se dado relevante apurar não ser isenta a esta constatação a localização espacial do fenómeno, sendo que grande parte dos casos acontece nas cinturas da Grande Lisboa, mais precisamente na Amadora, Buraca, Damaia, Alto de Santa Catarina, Pedreira dos Húngaros e Concelho de Oeiras, bem como na chamada Margem Sul, principalmente na região de Setúbal, onde há insidiosas situações de depressão económica e degradação urbana.
 
A par disso, pode-se apurar que a maioria dos cabo-verdianos em situação de criminalidade e de violência responde de fato à disfunção social a que está votada, seja a condição da pobreza, da vulnerabilidade e da discriminação, seja o desenraizamento em relação aos seus valores culturais e aos valores culturais do outro que lhe são vedados. A despeito do trabalho das associações comunitárias, dos ativistas culturais, das ações do Alto Comissariado para as Migrações e das políticas sociais e autárquicas de integração multicultural, o perfil tipo do imigrante violento coincide com aquele desenraizado e ostracizado, sem sucesso económico e sem reconhecimento social.
 
Entrementes, vale dizer que podem estar inscritas outras motivações que criam precondições e propensões para a violência e os comportamentos desviantes. E para se ousar explorar o labirinto de razões, torna-se mister aprofundar algum conhecimento sobre a sociedade matricial e de origem, nas suas dinâmicas antropológicas, históricas, ambientais, culturais, económicas e outras. Torna-se prudente e avisado uma luz sobre a dinâmica identitária que produz a psique coletiva (e seus desdobramentos individualizados) dos cabo-verdianos.
 
De onde vem o cabo-verdiano imigrante em Portugal? É claro que hoje ele provém de várias origens e não só do Arquipélago de Cabo Verde, sendo hoje uma Nação, constituída pelo arquipélago e a sua diáspora, formada pelos cabo-verdianos dispersos em vários cantos do mundo. Dito isto, afirma-se que a maioria provém de Cabo Verde, num fluxo migratório que acontece, com intensidades intermitentes em fluxos altos e baixos, desde o século XVI.
 
Impõe-se saber mais sobre Cabo Verde, que é um Pequeno Estado Insular, localizado na Costa Ocidental da África e no Atlântico Médio, faz parte da Macaronésia, como os arquipélagos dos Açores, Madeira e Canárias. A sua História tem génese no século XV, com o “achamento das ilhas” pelos Portugueses e pelo subsequente povoamento por europeus e africanos, estes últimos na condição de escravos e de serviçais, fato que resultou num dos mais bem sucedidos fenómenos de miscigenação conhecido, mas não isento de muita violência. Aliás, Cabo Verde é tido, pelos historiadores, como a mais antiga sociedade crioula do Atlântico e a crioulidade, pelo que se depreende, resulta de um cruzamento muitas vezes imposto e com regras de dominação do colonizador, geralmente macho, branco, proprietário e poderoso.
 
Para muitos olhares, Cabo Verde foi uma resultante do assentamento de várias migrações e o cabo-verdiano uma resultante inter-racial, intercultural e internacional que se afirma e se consolida doravante pela mestiçagem e pela recriação de uma cultura própria e sui generis, desde logo e, entre outros aspetos, pelo seu próprio quadro mental, psicológico e emocional, de que não se descura a violência iniciática.
 
Com mais população fora do que dentro, Cabo Verde é um dos países com mais altas taxas de emigração em todo o mundo. As estimativas apontam para um milhão na diáspora, sendo dezenas de milhares em Portugal. “Perguntar a um cabo-verdiano se tem alguém da família a viver fora torna-se caricato, dizem-nos: é claro que toda a gente o tem”, escreve Joana Gorjão Rodrigues (2015), num artigo sobre Cabo Verde, no Jornal Público.
O descritivo das várias mobilidades  na formação da sociedade cabo-verdiana, de uma antropologia constituída de migrantes e, em certo sentido, fora do lugar, introduz desde os primórdios o conceito diáspora, como algo intrínseco e extrínseco a Cabo Verde. Tem-se indagado sempre sobre a essencialidade do cabo-verdiano. O que o faz progredir em busca das formatações dos seus modos de ser e de estar? Cabo Verde tem uma dispersão arquipelágica/insular e uma dimensão migrante/diaspórica, que o torna uma Nação com uma geometria que hoje transcende ao Estado.
Os reflexos da insularidade e da diasporicidade constituem-lhe resíduos determinantes da sua forma de ser e de estar no mundo. O cabo-verdiano, já no próprio contexto arquipelágico, vive sob a dinâmica da movimentação geográfica, de cariz migratória e, em muitos casos, enfrentando vários elementos de condicionante psicológica, marcados pela perda – família, amizade, posição social e contato com a comunidade.
 
Uma das evidências que salta à vista é o posicionamento do ser humano insular e diaspórico às novas sociedades de acolhimentos, já que implica a exegese da compreensão mútua e de compreensão mútua, nem sempre possível em condições da desigualdade.
 
O enfoque também deve recair sobre o fator cultural, mais precisamente a forma de vida que se reflete no quadro linguístico  (no caso de Cabo Verde, na sua complexidade do bilinguismo), como elementos do seu universo, corolário de uma Nação mestiça, insular e de diáspora e da necessidade de gerir a sua dupla identidade linguística  na sociedade de acolhimento como Portugal.
 
Requer também apurar a relação conflitual, quase de diglossia, que enfrenta o ser cabo-verdiano perante a sua dupla condição de migrante (no universo inter-ilhas e no universo global), bem como a estruturação da sua psique perante os seus desafios culturais. O ostracismo migratório tem uma incidência extremamente disruptiva no processo de desenvolvimento psíquico dos cabo-verdianos e socioeconómico da maioria dos cabo-verdianos em Portugal.
 
As dinâmicas, resultantes do câmbio e do intercâmbio das formas de permanência, de mobilidade e de errância, nos seus contrapontos de isolamento, de distanciamento e de ausência, bem como de enraizamento e de desenraizamento (tanto em relação à pequenez das ilhas como das suas comunidades-gueto espalhadas pelo mundo), são o ponto nodal das várias formas de resistência (cultural, económica, social e psicológica) que são, ao fim e ao cabo, fenómenos da re-existência cabo-verdiana.
 
Entretanto, as portas não estão todas fechadas. Nem as mentes. Tendem os cabo-verdianos a não se posicionarem como “parte anexa”, mas  como parte integrante da sociedade portuguesa, sem perderem a sua identidade e a sua “cabo-verdianidade”. O modo como os cabo-verdianos se conectam e se interconectam, apesar de todo o conflitual, deixa espaço à cosmo-visão e à re-existência cabo-verdiana em diálogo com outros segmentos da sociedade portuguesa.
 
Apesar de tantos tensionamentos, o cabo-verdiano tem conseguido, mesmo que de forma lenta e debilitada, encontrar estratégias de resiliência e de adaptação, que o permitam minimizar os efeitos negativos da insularidade/diasporicidade e aproveitar aqueles que constituem oportunidades de sublimação da sua violência, com laivos que reconfirmam raízes antropológica e gizada sempre da perspetiva humana (e humanista).