Estados do ‘Self’ entre Corpo e Psique

Paola Golinelli
 

Em um mundo que se torna cada vez mais virtual, os corpos ficarão mais distantes e proibidos? Uma vinheta clínica lança questões que até agora não têm resposta.

0
Comments
763
Read

A raça humana está atravessando uma experiência nova e ‘aterrorizante’. Ela põe em questão a possibilidade de entrar em contato com outras pessoas, sejam elas nossos entes queridos ou o restante do mundo. Muito já se disse e ainda se dirá sobre a pandemia que de repente nos apanhou a todos. A situação atual é ‘exasperante’, um sentimento de desorientação que vivenciamos em relação ao físico. Na medida em que nos acostumamos cada vez mais com formas alternativas de relacionamento, algo passa por um processo de rarefação. Essas formas novas de relacionamento são mediadas por novos meios de comunicação que nos conectam em tempo real, mas também nos distanciam uns dos outros. 

Tudo isso também é relevante para o consultório do analista, ‘com suas paredes das quais sentirei muita falta’, comentou um paciente antes de passar para a análise remota. O corpo torna-se distante. Protege-se da relação com o outro, e isso pode ir até o isolamento e a ‘autossuficiência’quase total. (Por exemplo, penso na situação extrema dos adolescentes que sofrem da síndrome de Hikkimori). 

Será que o distanciamento necessário do contato com os outros provocará inevitavelmente mudanças na relação que temos conosco também?

Isso se contrapõe às evidências clínicas das nossas consultas cotidianas que sugerem que o corpo e o Self são depositários de experiências impossíveis de serem integradas.

As pessoas que recorrem a um analista o fazem por diversos motivos mas, creio eu, nenhuma análise está livre de um profundo sentimento de solidão NT.

A solidão pode ser, no extremo de um continuum, aquele sentimento radical descrito por Roussillon (2017) ‘que afasta o sujeito da condição humana e obstrui o processo de simbolização’. Esta é a solidão raivosa e angustiada – a solidão de alguém que passou por eventos traumáticos, ou dor insuportável e perdeu a capacidade de estar em contato com os outros e consigo próprio. 

No extremo oposto do continuum, encontramos a capacidade de estar só consigo próprio – a condição básica do Self que Winnicott (1975) aborda ao descrever o passo fundamental de desenvolvimento em que a criança aprende a ser confiante e a confiar na continuidade e solidez do objeto e do Self.

No primeiro caso, a solidão é o motor que pode levar uma pessoa a aterrissar no divã do analista, como um náufrago em um atol (Golinelli, 2003), forçada a sacrificar uma parte de si para salvar tudo. No outro caso, ao contrário, a solidão é uma conquista pessoal passível de ser sentida como o ápice de anos de trabalho analítico.
Talvez toda pessoa anseie [1] exercer esse admirável direito humano de existir como objeto total, na plenitude do seu próprio ser. Isso é possível quando a pessoa pôde vivenciar um objeto capaz de continência e continuidade, que lhe proporcionou o alicerce com o qual pode reconhecer que o mundo objetal e o Self são separados, distintos, mas também necessários um ao outro.

Bollas (2018) falou da solidão do Self e de como em seu interior se desenrola um diálogo entre o Ego e seu esforço ‘arrogante’ para manter unidas as realidades interna e externa e a falar a partir de ‘mim’. O ‘eu mesmo’ que ele menciona não é nem o Ego nem o inconsciente, nem o Self. Ao contrário, é o que ocorre na dimensão da experiência em que o ‘eu’atua como porta-voz de ‘mim mesmo’ que, por sua vez, funciona como depositário dos nossos objetos internos e externos. 

Se parássemos de falar para nós mesmos, não haveria ‘eu’ que fosse o interlocutor do esforço intenso e incessante que constitui o alicerce perene da nossa mente e da possibilidade que temos – quando estamos em contato com ela – de nos sentirmos inteiros, de sermos nós próprios.

É o ‘fluxo de consciência’ de James Joyce – aquela articulação de ideias conscientes enraizada, porém, em uma matriz inconsciente. Talvez Th. Ogden (2016) descreva isso de modo mais acurado do que outros analistas em seus relatos clínicos, incluindo tudo na égide da reverie.

Quando o diálogo consigo próprio, que garante o senso de existir como um ser único e singular, se interrompe parcial ou totalmente, o indivíduo é privado de uma parte do seu Self e tateia em busca da plenitude afetiva, emocional, pulsional; plenitude necessária para sentir-se vivo. Essa é a pessoa que adentra o consultório do analista, no diálogo entre analista e analisando, que precisa recomeçar para devolver o sentido ao sujeito. 
Os dois atores da cena analítica participam da ilusão compartilhada de serem capazes de se comunicar, não só por meio das palavras, mas também por meio da ‘porosidade’ interpsíquica entre eles (Neri, 1993, p. 49), transmissão de Self para Self, unidos pela busca compartilhada da dimensão subconsciente, na preciosa intimidade que vem do prazer de uma realidade interna, respeitando a separabilidade e a singularidade do sujeito (Poland, 2018). Essa é a novidade de um encontro psicanalítico que valida a necessidade de ser um Self ciente da impossibilidade de existir como indivíduo isolado, mas em comunicação com o restante do mundo. Se existir uma função analítica da mente, como Bion (1979) diz, podemos usá-la e cultivá-la com o objetivo de enfrentar a complexidade subconsciente que tanto o analista quanto o analisando têm interesse de decifrar e compreender. Isso se acentua mais ainda em um contexto como o atual, em que paira um perigo sobre todos nós e ameaça nos fazer regredir a expressões de solidão como as de pessoas que enlouqueceram. 

Partilho a seguir uma vinheta clínica em que o ‘corpo’ com sua linguagem complexa, multiforme age como protagonista na dinâmica de um par analítico trabalhando.
 
Um pequeno evento analítico
Por fim, tendo entrado pela porta da frente e percorrido o curto trecho que vai até a porta do meu consultório, onde a espero, a paciente olha para mim. Seu modo de me olhar lembra o jeito de os recém-nascidos me olharam e penso naqueles com quem tenho familiaridade, principalmente os do meu próprio lar. É um olhar penetrante, de profundo alcance, revelador. Às vezes, fico profundamente angustiada pois sei que não posso esconder nada dela – nenhum sentimento, nenhuma emoção que possa passar pela minha mente, nem mesmo a leve fadiga da segunda-feira de manhã. O olhar dela não tolera ambivalências.

Durante meses, o início da sessão tem sido uma negociação difícil. A paciente está irritada e distante. Às vezes, ela projeta o cansaço em mim e pensa que não quero estar com ela. Então, fica em silêncio. De forma alternativa, o corpo dela ‘fala’: dói aqui ou acolá e tudo o que ela quer fazer é dormir, arrastar-se para dentro de um casulo representado pela sua cama em casa – nunca abertamente associado ao divã, mesmo quando... Sua última tentativa, ao final de uma dessas sessões, pode ser de que a sessão terminou e ‘nada mudou!’.

Mais adiante, no decorrer da análise, de vez em quando, ela expressa o desejo de me mostrar coisas, mas o processo pelo qual chega a me mostrar é sempre longo e complexo, incluindo silêncios prolongados. Esforço-me para compreender por que é tão cansativo, mas espero até que ela revele que o mais difícil não é me mostrar essas coisas que de qualquer modo são importantes para ela, mas levantar-se para tirá-las da bolsa que as contém. A distância entre o divã e sua bolsa é cerca de dois metros; o que afinal significa dar três ou quatro passos. Posteriormente, ela dirá que tomar a decisão de se levantar e dar aqueles poucos passos faz parte do problema, porque nesses dois metros que ela precisa atravessar, eu a observarei e ela não estará mais protegida pelo divã, do qual ela necessita para se defender do desconhecido que seus passos podem revelar.

Penso que esses são passos que a separam de uma parte familiar do analista, que é reconfortante por estar bem protegida de uma exigência que o superego possa fazer. (Em análise, a pessoa deita no divã). É como se isso a fizesse sentir-se observada por um casal parental que a aprova e observa amorosamente, desde que ela se comporte como uma boa menina, quieta e composta, mas que não acolhe o impulso urgente de se mover para explorar novos territórios ou conhecimento carnal ou sexual. Há algo que não compreendo de imediato na angústia que percebo em seu comportamento antes de se levantar. Ela já fez isso algumas vezes, sempre com o objetivo de me mostrar algo, mas a angústia não diminuiu. Então, permiti que ela se levantasse, pensando que a angústia estivesse mais ligada ao conteúdo do que ela me mostrava do que ao movimento.

Quando ela se senta, após ter trazido o objeto, parece mover-se para um momento transferencial diferente. Ela, que em geral fala no limite audível do som, está mais confiante e em contato com seu Self, nesse momento em que eu a acolho. 

O que ela me mostra e o que diz são o prelúdio de uma transformação ativada pela passagem de ‘ingredientes’, que abriu um novo espaço de conhecimento para ela.

Uma Gradiva é encontrada aos pés do divã da analista, seda pura pregueada de 1 metro por 50 cm, pendurada na parede. A paciente a admira pela primeira vez desde que se deitou no divã.

Apenas nesse instante compreendo que a pessoa que se levanta do divã é uma espécie de Gradiva que, pela primeira vez, revela um aspecto do seu Self, de coração leve – ela que parece sempre oprimida pelo peso do negativo. Tenho a sensação de que até esse momento ela me manteve no limiar do seu mundo interno, fazendo-me vivenciar todo o seu tédio, melancolia, esforço, dificuldade de existir, tendência a queixas.

Ao acolher seu ato (levantar-se do divã durante a sessão), seu corpo e seu Self – depositários de experiências ainda não integradas – parecem revelar uma parte dela, antes oculta, realmente escondida por trás do peso do seu corpo e das palavras usadas por ela.

Essa encenação (enactment) construída em conjunto, abriu uma porta que antes estava fechada e que provavelmente se fechará de novo. Nesse ínterim, no entanto, foi possível ver algo diferente, algo leve pertencente à parte ‘arejada’ da psique da paciente. Muitas vezes, ela ficou oprimida por um corpo que parece permitir a expressão de uma parte psicossomática que se fecha, enrijece, bloqueia a atenção e o tratamento, em repetição.

Ao dar esses quatro passos, ela conseguiu sair momentaneamente, como se emergisse de um envoltório, do seu pétreo corpo- prisão, exibindo outra coisa. Assim, ela nos permite vislumbrar o Ariel escondido atrás e dentro do Calibán corpóreo e terreno (Shakespeare, 1621).

Eu mesma vivencio o alívio: juntas vivemos um momento ‘diferente’, ambas libertas das defesas opressoras, às vezes persecutórias. Agora somos senhoras de uma leveza simbolizada ‘Lightness’ é o primeiro e mais famoso dos belos Seis Propostas para o Próximo Milênio, de Ítalo Calvino (1988).

Para ele, a leveza é o valor agregado que a melhor literatura nos proporciona, pois tira o peso ‘dos corpos humanos num ponto, dos corpos celestes noutro, das cidades, da linguagem ... leveza e peso andam sempre de mãos dadas, eles são dois opostos e é preciso encontrar o peso certo. Às vezes parece que o mundo está se transformando em pedra, uma lenta petrificação que não deixa de fora nenhum aspecto da vida’ (p. 32). Será necessário que o mitológico herói Perseu, que voa com sandálias aladas, decapite a monstruosa Medusa que petrifica quem a olha. Ele não nega a existência dela. Ao contrário, reconhece sua fragilidade. Contudo, ele também sabe que a partir daí nascem criaturas voadoras – como Pégaso – e coisas belas – como os corais com os quais as ninfas se adornam. A analista / o Perseu do nosso milênio conhece as monstruosidades do mundo e assume sua parte do peso. Ela pode oferecer atos de ternura, pois sabe como essa monstruosidade é frágil. 
O que é leveza para minha paciente? É uma parte do seu Self que finalmente ela pode permitir que surja, uma vez que ela tenha saído da dimensão compulsória e repetitiva do seu oposto, que é a frivolidade eufórica e negadora. Após um longo processamento depressivo, o pensamento e a linguagem não estão mais oprimidos por defesas que oprimem, inibem e impregnam suas palavras com negatividade e angústia, ou que as tornam maniacamente frívolas e insubstanciais, quando a melancolia se tornou tristeza leve. 

Mais adiante, a paciente dirá ter sentido que os sentimentos, as palavras, os olhares entraram na analista como se estivessem em um refúgio tornando-se menos assustadores. Se a analista não estivesse assustada, ela então poderia pensar que esses pensamentos eram menos assustadores.

Essa é a característica específica da abordagem analítica, ou seja, ‘daquele produto da curiosidade reunida e colocada a serviço do respeito do analista pelo esforço introspectivo do paciente’ (Poland, 2018, p. 43). Torna-se possível acalmar o sentimento peculiar de solidão a que me referi no início, bem como a angústia de ser incompreensível para os próprios entes queridos da pessoa e o mundo sempre presente ao nosso redor.
Será ainda possível vivenciar e escutar o corpo e sua complexa comunicação por meio de uma tela? 
 
Referências
Bion, W. R. (1979). Making the best of a bad job. Clinical seminars and four papers, (1979). 247–57. Abingdon: Fleetwood Press.
Bollas, Ch., (2018) Meaning and Melancholia: Life in the Age of Bewilderment. London: Routledge.              
Calvino, I. (1988), transl. Brock, G. Six Memos for the Next Millennium. ‘Lightness’ (pp. 3-37). Boston: Mariner Books, 2016.
Golinelli, P. (2003). ‘The Castaway Self: a psychoanalytic reading of Castaway by Robert Zemeckis.’ Int. J. Psychoanal. 84, 2003 Part 1, 169-172.
Hoffmann, I. (1998). Ritual and Spontaneity in the Psychoanalytic Process: a Dialectical Constructivist View. The Analytic Press.
Neri, C., (1993). Campo e fantasie trans-generazionali. Rivista Psicoanal., 39:43-64. Rome: Borla. 
Ogden, Th. H., (2016). Vite non vissute. Milan: Raffaello Cortina Editore. 
Poland, W. (2018). Intimacy and Separateness in Psychoanalysis. New York: Routledge.
Roussillon, R. (2017). Fondamenti e Processi dell’Incontro Psicoanalitico. In La Relazione Analitica. Rossi, N., Ruggiero, I. (a cura di) Milan: Franco Angeli, pp. 44-50 
Shakespeare, W. (1621). The Tempest. 
Spadoni. A., (2007). ‘L’oscuro oggetto del bisogno,’ in E l’analisi va...Scritti Psicoanalitici e Memorie. Rimini: Guaraldi.
Winnicott, D. (1975). Through Paedriatrics to Psycho-Analysis: Collected Papers. London: Karnac Classics.
 
NT No inglês o termo usado pela autora é solitude.
[1] ‘Existir (...) inteiramente sem prejudicar nem o Self nem o objeto’ (Spadoni, 2007).

Tradução: Tania Mara Zalcberg
 

Mais artigos de: