Castas na mente

Shifa Haq
 

A psicanálise na Índia com frequência exige compromisso com a justiça social. Muitas vezes a análise ficará incompleta se evitar a questão das castas como calamidade no cerne do inconsciente indiano.

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O hábito não costuma ter sentimentos.
‘Hábito’, F.M. Shinde (traduzido por Priya Adarkar)

Na minha infância o verão significava o retorno ritual para a casa dos meus avós, localizada perto do rio Gomti, no norte da Índia, no estado de Uttar Pradesh. Em comparação com a nossa vida solitária na cidade de Delhi, ali a vida significava uma complexa rede de relacionamentos. 

A expectativa comum era lembrar os laços com primos colaterais, descendentes ancestrais e seus filhos. Bem como os nomes de maulvis (estudiosos religiosos), alfaiates, barbeiros e açougueiros. Portanto, foi preocupante quando, após um dia brincando ao ar livre, minha tia zombou de mim ao declarar que meus pés enlameados e sujos ‘pareciam os de uma chamarin e não seriam tolerados dentro de casa’. Eu jamais ouvira aquele nome antes. Não sabia quem era ou como era. Com certeza não sabia que não se tratava de uma única mulher, mas de um coletivo de párias associado ao curtimento de couro. Um nome ressuscitado do nada, da invisibilidade permanente. No entanto, algo no tom da minha tia me convenceu que seria uma decadência potencial do self, terrível demais para ser bem recebida. Uma ameaça ao amor e aprovação tão necessários. Ao lavar meus pés e minhas mãos, senti profundo alívio pois evitaria uma suposta degradação perigosa ou mutação irreversível. Ao mesmo tempo, permanece em minha mente a lembrança de humilhação e de rejeição. O aviso de que uma pessoa poderia ser banida de casa, ficar sem nome para sempre, um pária social. Ao invés de me sentir segura após o ritual, senti que minha tia sugeria que para algumas pessoas (inclusive para mim) a sujeira era endêmica e não podia ser lavada. Como uma falta ou defeito de nascença. Sem perceber conscientemente, recebi minha primeira lição sobre a contaminação das castas e a intocabilidade na Índia. Insultos a respeito de castas, tal como ‘chamar’ NdaT (masculino) ou ‘chamarin’ feminino são aplicados de forma pejorativa e estratégica para ferir os dalits NdaT1 – ou as castas oprimidas – na Índia e em outros lugares.

Inserida na lógica da pureza-contaminação e de transmissão hereditária, na sociedade indiana a casta é uma forma de estratificação e dominação social que busca controlar a ocupação, a hierarquia social, as interações e exclusão de pessoas. Deriva sua autoridade de antigos textos hindus, legitimando a negação de direitos humanos básicos, como acesso à água, liberdade de usar as vias públicas ou de escolher outra ocupação que não seja as que foram atribuídas por nascimento. Na Índia moderna, a casta não é um legado inquestionável, mas um pernicioso hibridismo de opressão. A história dos dalits narra atrocidades cometidas aos corpos de dalits por meio de trabalhos forçados em curtumes, crematórios e coleta manual de lixo enquanto rotineiramente são linchados e estuprados. O termo ‘dalit’ em hindi significa quebrado ou rachado – nome e identidade política que os ‘intocáveis’ reivindicaram para suas comunidades. Seria mais fácil dizer que a casta é um sintoma irremediável na mente indiana. Ao contrário, a casta, para a maioria dos indianos de casta superior, permanece um nada não formulado – a negação agressiva – especialmente se o seu nascimento garantir privilégio e poder. 

Freud, em seu artigo ‘Algumas consequências psicológicas da distinção anatômica entre os sexos’, considerou que as mulheres são sujeitos que permanecem livres da ansiedade de castração, devido à falta primordial de pênis, algo que era constitutivo da força, independência e moralidade nos homens. Em sua opinião, as mulheres seriam inferiores aos homens em termos de consciência moral e julgamento. Com uma lógica notavelmente semelhante, a ideologia bramânica postula uma inferioridade fundamental de nascimento e de falta de inteligência ou de julgamento para as castas inferiores, de maneira que a dominação social e a exploração dos dalits não produzem vergonha nem culpa na psique indiana. Realizada ao longo dos séculos, a exploração dos corpos e das mentes das castas dalit alterou radicalmente a consciência hindu. O campo afetivo não é marcado por culpa ou vergonha, domínio de introspecção reparadora no opressor, mas pela humilhação e raiva no oprimido, o despertar da velha ferida como uma nova chegada. Afirmo que a superfície afetiva da humilhação pode oferecer uma topografia psíquica de casta. 

Em seu artigo, Mool Naiak, B.R. Ambedkar, o pensador revolucionário da Índia moderna comparou a rigidez da segregação de castas à de uma ‘torre com vários andares sem escadas nem entrada. A pessoa deve morrer no andar em que nasceu’ (Kapoor, 2003). Tendo observado as lutas dos negros durante sua estada na Universidade de Colúmbia (1913-1916), com a segregação racial de negros ostensivamente naturalizada, Ambedkar formulou os dois sistemas de opressão – escravidão e intocabilidade – para ressaltar o nível de dano psicológico que surge a partir desses sistemas. Ele escreveu: ‘A escravidão nunca foi obrigatória. A intocabilidade é obrigatória’ (ibid., pp. 5345), concluindo que é preferível uma forma franca e direta de escravidão do que o roubo de consciência da escravidão da pessoa que é a intocabilidade. Para Ambedkar, tomar consciência da própria opressão implicava a rejeição das interpretações religiosas da teoria do nascimento e do carma. Para os hindus de casta, bem como para os dalits, que se dissociaram energicamente das raízes religiosas da opressão baseada em casta, esse foi um passo ousado e perigoso, pois significa que a parte rejeitada ou ‘indesejável’ da realidade pode retornar ao ego, desejando ser repatriada (Freud, 1927).

A prática da psicanálise na Índia – com a possibilidade de subverter o sistema de castas existente e que é considerado tão tabu quanto o incesto ou o parricídio no inconsciente – exige compromisso com a justiça social e o reconhecimento de que a neutralidade não será a única curva a atingir nossos pacientes no limite do discurso. 

Siya, paciente no final de seus trinta anos, chora muito, muito baixinho. Ela tem um ritual, um hábito. Ao se aproximar das lágrimas, ela monta um ‘vaso sanitário de lágrimas’ com a caixa de lenços de papel ao lado da sua cadeira e a lixeira a seus pés. A cada vez que surge uma lágrima, ela enxuga os olhos vigorosamente, cutuca o nariz e atira o lenço na lixeira. Entristeço ao imaginar suas mãos ágeis apagando a gota de lágrima no momento exato do seu nascimento. Fica evidente para mim que ela não permite que se tornem uma sensação, um rastro úmido de emoção. Ao contrário, ela cutuca o nariz e os olhos para remover o que podem ser excreções nojentas do corpo. Após sua saída, noto os lenços de papel espalhados fora da lixeira. Com frequência, sinto nojo de pegá-los. Alguns dias também me pergunto se estou me sentindo humilhada. Isso me impacta, parece incomum. Repete-se ao longo de vários anos de terapia. Um dia, ela expressa seu desgosto pela expectativa autoritária de seu pai a respeito das mulheres da casa. Muitas lembranças vêm à tona. Ela fala de uma ocorrência especialmente difícil e repetitiva com o pai que, após o banho, deixa sua cueca usada para ser lavada por outra pessoa, isto é, pelas mulheres. Nas ocasiões em que Siya é a próxima a tomar banho, a mãe espera que a filha lave as roupas íntimas do pai. Não há espaço para recusar; ela considera isso desvalorizador e humilhante, como se lhe mostrassem qual é o seu lugar na família. Nesse momento, ela começa a chorar, enxugando vigorosamente as lágrimas que surgem e atirando os lenços na lixeira. Alguns lenços de papel caem para fora. No meu íntimo sei que é um momento crucial. Penso em como transformar o indizível em algo possível de ser falado. Digo: ‘Tenho uma vaga ideia de como pode ser isso. Você me faz conhecer como é ser desvalorizado quando deixa os lenços usados para eu pegar após sua saída’. Escandalizada, ela diz: ‘Nunca tive a intenção. Faço realmente isso?’ Um instante depois, na tentativa de se salvar, ela acrescenta: ‘Pensei que você tivesse alguém para limpar sua sala!’

Ao encenar uma experiência profundamente pessoal, um ‘segredo sujo’, de contato com o universo sádico anal do pai (e da mãe), passamos a falar de humilhação, uma linguagem de ódio a um objeto colonizador e erotizado. Eu era o seio-latrina – necessário, não amado – para jogar fora a agressão excindida mantendo os aspectos do seio-nutriz seguros e separados (Meltzer, 1967; Lemma, 2014). Também reconheci que, enraizado no encontro, estava o colapso da ansiedade excindida, revelando fantasias de sujar, contaminar e envenenar desempenhadas entre os gêneros e entre as castas. Como é ser necessária, enquanto latrina, sem ser amada? Além da reconstrução da vida intrapsíquica, que estruturas sociais ou identidades serão desenterradas na anatomia da humilhação? Dado que essa interação ocorreu entre uma paciente da casta hindu e uma terapeuta da casta muçulmana, pode ser analiticamente útil compreender a dinâmica específica de historicidade das relações hindu-muçulmanas, com a primeira como mestre e a última como minoria no contexto social indiano ou na imaginação política. Eu diria que essa análise permanecerá incompleta se evitar ou desconsiderar a casta como fantasma punitivo no cerne do inconsciente indiano. 

A fantasia da paciente de que devo ter alguém para limpar minha sala dificilmente é um golpe provocativo na vida privada da terapeuta – digamos a presença de um terceiro edipiano com quem usufruo intimidade ou proximidade para rivalizar. Ao contrário, é o retorno fantasmagórico da casta nas profundezas da vida inconsciente e a cumplicidade de uma desvalorização, rejeição e aniquilação silenciosa do outro (Guru, 2011). A paciente se defende da nossa diferença radical não nomeando a casta. Ter ‘alguém para limpar’ revela a suposição de que ela e eu somos iguais em nossa repulsa pela contaminação corporal ou pior, repulsa pela figura do faxineiro (muitas vezes um dalit, muçulmano ou refugiado) – a sombra sem nome que surge de guetos urbanos para servir às castas e classes superiores. A faxineira substitui a terapeuta em um momento transferencial explosivo. Em outro nível, em sua fantasia, presume-se que eu também rejeite meus aspectos confusos e emporcalhados (o pai) que são administrados por alguém menos privilegiado; e que eu seria a performer neutra ou acrítica (a mãe), agora imperturbável pela desvalorização perpetuada pelo mecanismo de castas.

Ao refletirmos a respeito da importância do reconhecimento do outro em momentos cocriados de reciprocidade, esperamos por momentos entre duas mentes que sobrevivam à complementaridade submissão-dominação. O reconhecimento mútuo implica transformações nascidas no encontro com a diferença do outro, isto é, o self como o outro do outro. O outro sobrevive à destruição a serviço de uma verdadeira descoberta, de um sujeito semelhante que é distinto e separado (Benjamin, 2017). As relações de casta, por outro lado, revelam uma área de ‘reconhecimento excedente’, isto é, um custo social que alguém na sociedade precisa arcar para a ascensão de outra pessoa (Guru, 2011). No contexto indiano, dalits e muçulmanos habitualmente são reduzidos ao nível da natureza por comparação com os animais ou, em nível estrutural, a uma mercadoria. Quando linchado apenas por suspeita de abate de vacas, seu valor é considerado inferior ao de um animal. 

Ao atribuir um significado repulsivo a algumas vidas e ao trabalho delas, a casta encena na mente e exclui da memória experiências de desvalorização e de rejeição. Por meio da encenação de hábitos ‘inocentes’ – uma brincadeira no interior de uma brincadeira – a casta volta à clínica como uma catástrofe impensável a ser sentida como uma lágrima rolando no rosto da pessoa ou do outro. 


NdaT Castas de intocáveis ou párias na Índia. 
NdaT1 Indigentes. São impuros e não estão inseridos em nenhuma casta. 
 

Referências 
Benjamin, J. (2017). Beyond Doer and Done To – Recognition Theory, Intersubjectivity and the Third. Routledge: New York.
Freud, S. (1927). Fetishism. S.E. 21. London: Hogarth Press, pp.147-157.
Freud, S. (1927). Some psychological consequences of the anatomical distinctions between the sexes. Int. J. Psycho-Anal., vol. 8, 133-142.
Guru, G. (2011). Humiliation – Claims and Context. New Delhi: Oxford University Press.
Kapoor, S.D. (2003). B.R. Ambedkar, W.E.B. DuBois and the Process of Liberation. Political and Economic Weekly, vol. 38, issue no. 51-52, December 27, 5344-5349.
Lemma, A. (2014). Off the couch, into the toilet: exploring the psychic uses of analyst’s toilet. Journal of the American Psychoanalytic Association, vol. 62, issue 1, 35-56.
Meltzer, D.W. (1967). The Psychoanalytic Process. London: Heinemann.
Shinde, F. M. (2009). Habit, trans. Priya Adarkar. In A. Dangle (ed.), Poisoned Bread. Hyderabad: Orient Black Swan, p. 80.

Tradução: Tania Mara Zalcberg
 

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