Nesta contribuição norte-americana à edição eletrônica sobre sexualidades, baseio-me em importante influência proveniente da Europa, a obra de Jean Laplanche (1997, 1999, 2015). Pretendo trazer sua revisão radical da teoria pulsional e da metapsicologia clássica para uma conversa com os projetos norte-americanos em que gênero e sexualidade, juntamente com questões de identidade tais como raça, classe e cultura são tratadas como formas fluidas integráveis de identificação e subjetivação.
Apoio-me em antecessores importantes. Em particular, esse é o projeto com o qual a falecida Ruth Stein (2007, 2008) se ocupou, baseado no modelo da sedução enigmática de Laplanche, do desamparo inicial, da transmissão inconsciente de mensagens, da tradução e finalmente do
après-coup como relato revelador da construção complexa do sexo, gênero e do sexual (termo de Laplanche). Na última década, principalmente por meio de poderosa força de traduções de Laplanche, os psicanalistas de língua inglesa puderam absorver a complexidade e o alcance da sua teoria.
Laplanche usa de modo continuado e insistente o termo “sedução materna” para transmitir a experiência na qual as mensagens, por permanecerem a princípio inconscientes para o remetente e o receptor, são uma experiência inevitável da ligação primitiva genitor-criança (1997). Ele insiste muito na questão da assimetria. Essa insistência levou-o a reunir esse aspecto da sua teoria sob a rubrica de “Situação antropológica geral”. As pessoas envolvidas na transmissão, da parte do adulto, serão diversificadas: genitores, cuidadores, irmãos e outros com quem a criança se encontra. Mas, apesar de haver uma variedade de pessoas, a assimetria é constante na relação do adulto com a criança. Stein (2008), Saketopoulou (2014; no prelo) e outros baseiam-se nessas ideias para pensar na mensagem, parte crucial da origem e instalação do sexual infantil, como contribuição central para os aspectos inerentemente excessivos da sexualidade.
As mensagens comunicadas do inconsciente do adulto para a criança transmitem um processo enigmático e imprevisível. As mensagens, em grande medida, não são codificadas pelo remetente nem pelo receptor, ao menos não inicialmente, no momento da transmissão. O
insight descoberta central e brilhante de Laplanche é que essas mensagens enigmáticas constituirão o inconsciente e, como o infantil sexual, o inconsciente da criança. A sexualidade infantil, na criança, resulta das intrusões enigmáticas do outro: alguém separado da criança, mas profundamente enraizado. A criança não é vazia nem não responsiva, mas inicialmente o bebê é desamparado. Essa assimetria fundamental entretecida com a transmissão inconsciente de adulto para criança produz a potência, o caráter enigmático e o excesso inevitável, constitutivos da sexualidade.
Quaisquer que sejam os processos sensoriais e receptivos/interativos na criança, a sexualidade, na forma de sexualidade infantil do adulto, chega de uma fonte estrangeira. Essa parte da teoria se acresce de forma pujante ao conceito de interseccionalidade (Crenshaw, 2011), ou seja, a sensibilidade e suscetibilidade da criança à sexualização dos “outros”.
O conceito de interseccionalidade de Crenshaw veio de uma perspectiva teórica feminista negra e sua aceitação tem sido um desafio para os psicanalistas. Ela nos solicita a considerar que gênero e sexualidade sempre estarão ligados, talvez comprometidos, interligados com muitos outros aspectos da subjetividade: raça, classe, cultura. Mas pede muito mais. Crenshaw interessou-se pela forma na qual as pessoas são apanhadas por identificações múltiplas e marginalizadas e, consequentemente, são vulneráveis de múltiplas formas à subordinação. Esse argumento segue Fanon que desenvolveu a possante força da excitação, do pavor e da inveja através das divisões raciais que moldaram o ataque assassino ao corpo masculino negro. Retorno à essa questão no final deste ensaio.
Tanto Laplanche quanto Crenshaw, em separado e em conjunto, se afastam da noção de pulsão inata e de formas endógenas de sexualidade. Laplanche argumenta, somos sexuados, homens e mulheres, temos gênero: que surge como atribuição e somos sexualizados via mensagem do inconsciente sexual de outros. Ao mesmo tempo, um elemento crucial para Laplanche foi ressaltar a diferença entre normatividade da implantação e a patologia e o trauma excessivo da intromissão. A intromissão para Laplanche muito vividamente consiste de abuso sexual, incesto e trauma sexual excessivo do adulto para a criança.
Na psicanálise francesa, Chetrit-Vatine (2004) tem um modo especialmente oportuno de entremear a sintonia do apego ao excesso de sexualidade. O enigma não está apenas na fase de transmissão, mas seus efeitos imprevisíveis continuam no processo mais longo de tradução, que pode ser reflexão solitária, transformação inconsciente ou interação dialógica em que persistem formas conscientes e inconscientes. Precisamos conviver com muita capacidade negativa. Mas o modelo de transmissão e de tradução nos permite elaborar modelos de desenvolvimento menos controlados ou dominados por abordagens induzidas pela genética ou pela biologia.
Se os binômios de raça e gênero e sexualidade funcionam como forças de interpelação na teoria psicanalítica, também é verdade que a psicanálise, em diversos projetos fundamentais, insurgiu-se contra essa pressão doutrinária. Argumentarei que o modelo de Laplanche – suas propriedades dialéticas e embrionárias, seu foco no advento propõe maneiras novas de pensar o desenvolvimento de gênero e sexualidade e a complexa interação interseccional de diversas categorias de subjetividade: classe, cultura, raça associados a gênero e sexualidade.
As unidades complexas de construção da representação nos afastam ainda mais da organização e do enfoque de Lacan e nos aproximam mais das teorias de Laplanche e de Bion. Na tradição interpessoal, Levenson e Bromberg localizariam essa profunda sintonia com a experiência não simbolizável, a Sullivan e sua teorização da dissociação e da experiência do “não eu”. Todos esses modelos de estrutura da fala e de camadas de representação e de consciência auxiliam na elaboração da complexidade de gênero e sua interface e o encontro com a sexualidade e outros aspectos da subjetividade.
À luz dessas evoluções pós Laplanche, desejo ampliar o que potencialmente se transmite em uma mensagem e observar o entrelaçamento de diversas categorias de subjetividade (raça, gênero, classe, por exemplo) no interior da mensagem que transmite a sexualidade. Além disso, considero o mecanismo, o aparato da mensagem enigmática como um processo através do qual um espectro de experiências traumáticas (letais e usuais) se transmitirão de modo intergeracional. O modelo de Laplanche, de sedução materna enigmática, é uma versão do trabalho alfa apesar de ser muito mais erótico, incrustrado e somático do que o enfoque bioniano de grade poderia supor.
A sedução materna enigmática também pode ser um ato de interpelação, além de seus vários efeitos no estabelecimento do inconsciente e da sexualidade no bebê e na criança em desenvolvimento. Não quero dizer que seja sempre uma comunicação planejada de maneira consciente. As interpelações surgem de muitas formas ao longo de um espectro de experiências conscientes e inconscientes. Pode ser interessante pensar em uma mensagem que instale alguns aspectos da sexualidade na criança e que, ao mesmo tempo, envergonhe e proíba essa formação.
Dessa maneira, podemos imaginar que em meio à mensagem enigmática do desejo está a mensagem relativa ao seu caráter moral, talvez até mesmo legal. O próprio Laplanche se empenha na discussão sobre a função do tabu na tradução, mas talvez perca a oportunidade de perceber em que medida a impossibilidade ou a patologização dos desejos e identificações pode estar inserida na transmissão e, portanto, adequada a formas inimaginavelmente complexas de tradução. Que renovações ou revisões de binômios na formação da identidade podem tornar-se visíveis se compreendermos que o excessivo, o que está além do registro fácil da transmissão inconsciente, por meio dos quais os binômios são projetados e introjetados, inclui tanto os fenômenos de desejo, implantados a partir do outro no
self que surge, juntamente com as instruções acerca do que é imposto e do que é proibido, o que é doentio e o que é saudável.
A mensagem enigmática provavelmente virá com instruções acerca do que hoje denominamos normatividade heterossexual e, como todas as mensagens enigmáticas, essas instruções podem estar repletas de conflitos e contradições. Uso o termo “instruções” não para ressaltar a percepção consciente, mas para estabelecer contato com os escritores que pensam nas mensagens inconscientes transmitidas em relação a agendas de vida, traumas, etc.
A interseccionalidade que insiste em situar nossa compreensão da sexualidade na encruzilhada de outras forças oponentes e, muitas vezes, conflitantes: raça e classe em particular. Todas essas teorias situam gênero e sexualidade no paradigma intersubjetivo, de acordo com a compreensão de que a identidade resulta de incongruências complexas.
O que torna Laplanche um parceiro teórico tão importante para Crenshaw é seu compromisso com o poder do outro, genitor, irmão, outro que não a própria criança como transmissor de mensagens (conscientes e inconscientes) para a criança que, lenta e inexoravelmente constituem sua sexualidade e a sexualidade infantil inconsciente na medida em que essas mensagens são traduzidas. Essa é uma teoria da sexualidade, um dos elementos cruciais no modelo de Crenshaw constituído de forma social e interpessoal. Laplanche propõe um modelo de desenvolvimento em que as forças da história, da experiência social e do desejo chegam inevitavelmente na e para a criança. É um modelo de formas de identidade originadas de maneira interpessoal que constitui o mecanismo através do qual as experiências identitárias conflituosas de Crenshaw se instalam na criança sob a forma e no estágio de desamparo e de vulnerabilidade inicial.
Eis um exemplo sucinto do que isso pode significar.
Com o objetivo de pensar a respeito da interseccionalidade e da elisão mútua, enfoquemos um exemplo, presumivelmente tirado do tratamento de uma mulher nos anos 1920. Como pano de fundo, eis o texto de Riviere decisivamente questionado. Riviere detalha uma fantasia masturbatória de infância da paciente, a quem ela identifica como americana do sul dos Estados Unidos.
Então surgiu essa fantasia, que tinha sido muito comum em sua infância e juventude passada no sul dos Estados Unidos: se um negro a atacasse, seu plano era defender-se fazendo-o beijá-la e fazer amor com ela (para que, afinal, ela pudesse entregá-lo à justiça). Mas havia mais um determinante do comportamento obsessivo. Em um sonho com conteúdo bastante semelhante a essa fantasia infantil, ela estava sozinha e aterrorizada em casa; um negro entrava e a encontrava lavando roupas, com as mangas arregaçadas e os braços expostos. Ela resistia a ele, com a intenção secreta de atrai-lo sexualmente e ele começou a admirar e a acariciar seus braços e seus seios. (1929, p. 309).
Ao examinar esse material agora, com a interseccionalidade e a elisão mútua em mente, parece importante destacar a agenda da escritora, Riviere, mulher do início do século 20 na Inglaterra, não sintonizada com o racismo norte-americano em sua pior forma. Nossa preocupação, nesse caso, é a amnésia dos leitores norte-americanos ao longo de quase um século. Muito depois, esse artigo, com suas ideias a respeito da mascarada, atraiu o interesse de Lacan (1960). Ele também não percebeu, o que não causa surpresa, as implicações significativas de raça e gênero. Para o nosso objetivo, o interesse nesse caso é examinar a mensagem subjacente com sua complexa agenda de perpetração, de ataque assassino à sexualidade masculina e ao homem negro: totalmente ocultos no interior da fantasia sexual de uma criança.
Referências
Chetrit-Vatine, V. (2004). Primal seduction, matricial space and asymmetry in the psychoanalytic encounter.
Int. J. Psychoanal., 85, 841-56.
Crenshaw, K. (2011). Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color.
Stanford Law Review, 43, 1231-99.
Laplanche, J. (1997). The Theory of Seduction and the Problem of the Other.
Int. J .Psychoanal., 78: 653-666.
-- (1999)
Essays on Otherness. London: Routledge.
-- (2015).
The Temptation of Biology: Freud’s Theories of Sexuality. New York (UIT).
Riviere, J. (1929). Womanliness as a Masquerade.
Int. J .Psychoanal.,10, 303-313.
Saketopoulou, A. (2014), To suffer pleasure;the shattering o the ego as the psychic lie of perverse sexuality.
Studies in Gender and Sexuality, 14 (3) 245-252.
-- (In press), The draw to overwhelm: consent, risk and the re-translation of enigma.
J. Amer. Psychoanal.
Stein, R. (2007). Moments in Laplanche's Theory of Sexuality. Studies in Gender and Sexuality, 8(2):177-200.
-- (2008). The otherness of sexuality: Excess.
J. Amer. Psychoanal. 56, 43-71.
Tradução: Tania Mara Zalcberg