A morte do "Mano": Terror, fragilidade narcísica e colapso psicossomático

Dr. Ricardo Jarast Kaplan
 

A 50 anos de "O Eternauta", o clássico comic de Oesterheld, o autor focaliza a "glândula de terror" que inibe todo protesto, universaliza o problema e aponta para evasões psicossomáticas.

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Winnicott dizia que a maioria de suas ideias encontrou inspiração em seu trabalho com os pacientes, naquilo que eles lhe fizeram pensar e viver. Muitos pacientes passam a vida se perguntando se o suicídio seria uma solução, isto é, entregar o corpo a uma morte já acontecida psiquicamente. Desta forma, o suicídio seria um gesto desesperado. “Agora compreendo - pela primeira vez - o que me disse uma paciente esquizofrênica que se suicidou quando falou: ‘tudo o que eu lhe peço é ajuda para suicidar-me pelo motivo certo e não por um motivo equivocado’. Não consegui fazê-lo e ela se matou desesperada, em busca de uma solução”. Winnicott reflete com dor e escreve que deveria ter dito que ela já havia morrido em sua primeira infância. Assim, poderia ter alcançado a velhice.       

Para Winnicott o medo do colapso é o receio de um colapso que já aconteceu. É o medo de uma agonia primitiva que obriga a montar uma organização defensiva. Esta agonia primitiva não poderá tornar-se tempo passado se o paciente não for capaz de acolhê-la em sua experiência do presente. Se o paciente consegue aceitar este paradoxo abre-se um caminho para vivenciar sua profunda dor na transferência. Winnicott descreve diferentes agonias primitivas: o retorno a um estado de não integração; uma queda sem fim; a perda do sentido de realidade; a perda da capacidade para relacionar-se com os objetos; a perda da relação psicossomática.     

O Eternauta e a morte do "Mano" 
Em 2007, a Biblioteca Nacional de Buenos Aires comemorou com uma homenagem os 30 anos do trágico sequestro e desaparecimento de Héctor Germán Oesterheld e suas filhas durante a ditadura de Videla, junto com os 50 anos do nascimento de sua obra cume, O Eternauta. Trata-se do mais importante comic argentino, com reconhecimento internacional. Oesterheld dá vida, através de um roteiro impecável, a um grupo de habitantes de Buenos Aires que enfrenta uma invasão extraterrestre empenhada em destruí-los. 

“... Sou fascinado pela história de Robinson Crusoé, conta Oesterheld. Ganhei o livro quando pequeno e acredito que li mais de vinte vezes. O Eternauta inicialmente foi a minha versão de Robinson. A solidão do homem cercado, preso, dessa vez não pelo mar, mas pela morte. Tampouco o homem solitário de Robinson, senão o homem com família, com amigos. Publicado semanalmente, O Eternauta, foi construído semana após semana. Existia uma ideia geral, mas a realidade concreta de cada publicação era modificada constantemente. Assim, surgiram situações e personagens que inicialmente não havia sonhado, como o mano e sua morte”.            

O Eternauta é uma história circular. O círculo começa num chalé da localidade de Vicente López (nos subúrbios de Buenos Aires). Numa noite aprazível, jogavam baralho −“truco”− Juan Salvo, proprietário de uma pequena fábrica de produtos elétricos; Favalli, físico e professor universitário; Polsky, aposentado, e Lucas, bancário. Estavam em companhia de Elena e Martinha, esposa e filha de Salvo respectivamente. Enquanto o jogo se desenrola serenamente, fora da casa inesperadamente começa a nevar, algo insólito em Buenos Aires. Porém, além do mais, trata-se de uma nevasca mortal: o contato com os flocos leva a uma morte instantânea. Quando os jogadores descobrem isto, já existem muitas vítimas.

Favalli, arquétipo da agudeza intelectual, acha uma maneira de sair para o exterior: desenha um traje isolante que é fabricado com materiais encontrados na casa de Salvo. E acaba por ser Salvo, O Eternauta, o primeiro a vestir o traje e explorar a paisagem humana devastada. Lentamente, Salvo e seus amigos descobrem que a nevasca assassina vincula-se a uma invasão extraterrestre. Os invasores, chamados de “Eles”, não têm atributos tangíveis e nunca se tornam visíveis. Sua visibilidade manifesta-se  através de seus subordinados: os “Cascudos”, os “Homens-robô”, os “Gurbos” e os “Manos”. Os três primeiros são mandados por estes últimos. Utilizando um órgão de numerosas teclas são emitidas ondas que transmitem as ordens que deverão ser seguidas pelos outros instrumentos da invasão.

Em difícil travessia noturna, Juan Salvo encontra outros sobreviventes: um trabalhador de nome Franco e um grupo de soldados. Civis e militares uniram-se com o propósito de rechaçar os invasores. O caminho individual e solitário de Salvo se torna uma ação coletiva e solidária. A ideia de Oesterheld visa transcender o Robinson original de Defoe através do heroísmo grupal. 

O herói coletivo combate os “Cascudos” na Avenida General Paz (a M-30 de Buenos Aires). E depois na batalha do Estádio Monumental de River Plate. 

Continuando com a aventura, Salvo e Franco se deparam com um pavilhão que emite uma forte luminosidade. Em seu interior, um “mano” comanda as forças invasoras. Salvo e Franco são capturados, mas sucessivos e mutáveis acontecimentos os tornam raptores do “mano”. Ficam sabendo que os “manos” foram invadidos e conquistados em seu planeta de origem pelos “Eles”. Se os primeiros desobedecerem aos segundos, o “mano” sentirá um medo tal que sua glândula de terror será ativada liberando uma substância venenosa que produzirá sua morte. Antes de morrer as intenções dos invasores são reveladas: conquistar os humanos para escravizá-los.
Com este conhecimento da “glândula de terror”, em novo encontro com um “mano” num túnel do metrô, Favalli o desafia, aponta-lhe sua debilidade e seu segredo. A mudança facial e corporal do “mano” está ilustrada de maneira magistral nas vinhetas. Do rosto pétreo, narcisista, onipotente, dominador, passa ao pânico, descontrole e colapso. Seu fanatismo defensivo se desfaz, desprende-se sua pele e, finalmente, entoa uma canção de ninar de despedida. 

Freud, Arendt, Agamben e Browning 
Será que o psicanalista pode comunicar-se com testemunhas de situações de horror e conter seu colapso?            

Em seu texto O mal-estar na civilização (1930), Freud escreveu:

“... podemos retroceder espantados frente a determinadas situações como a do escravo galeote da Antiguidade, o camponês da Guerra dos Trinta Anos, as vítimas da Santa Inquisição, o judeu que aguardava o pogrom; podemos espantar-nos à vontade, mas é impossível ter uma relação empática com essas pessoas, impossível deduzir as alterações que o embotamento originário, a insensibilização progressiva, o abandono das expectativas, formas mais grosseiras ou mais finas de narcoses, produziram na receptividade das sensações de prazer e desprazer”.

Segundo Freud, existem situações limite como os campos de concentração onde não há uma Einfühlung possível, ou seja, um contato com o que alguém experimentou, um compartilhamento imaginário do que fora suportado. Essa impossibilidade não cria apenas um obstáculo na transmissão da experiência, como fora manifestado pelos sobreviventes, senão que designa –justamente- o que colapsa nesse universo: o comum com os outros homens.       

Podemos levantar algumas questões sobre o colapso do comum:
1   A que ordem de representação pertence o colapso do comum nos campos de concentração?
2   Como está montada essa representação para aquele que passou por essa experiência e que procura pensá-la, escrever sobre a mesma e dar seu testemunho?
3   Devemos aceitar nomear aquilo proveniente do comum colapsado, “o inumano” ou “o não-humano”, conforme as diferentes nomenclaturas teorizadas a partir de Hannah Arendt, procurando significar desta forma a radicalidade de uma condição na qual existe uma ruptura com a categoria do humano? (Benslama)

Algumas teorias postulam que o acontecido nos campos de concentração foi a forclusão do humano no homem. O autor que desenvolveu esse tema com maior profundidade é Giorgio Agamben no ensaio intitulado O que resta de Auschwitz. Para que uma forclusão desse gênero fosse possível seria necessário que a identidade humana de alguém estivesse alojada nele como se ele fosse um lugar, e então fosse possível despejá-la desse lugar e expulsá-la para o exterior. No entanto, ao afirmar que um homem é um homem, utilizamos o termo “é”. O que escapa à localização é um registro, é aquilo que se torna o alvo da crueldade mais extrema. Para os nazis, a Shoá era “a solução final do problema judeu”, uma crença que se sustentou graças a uma teoria baseada na ideia de que os judeus, a diferença de outras raças, não possuíam um tipo físico determinado e eram capazes de confundir-se no seio de outros povos, portanto precisavam ser “fixados” dentro de um corpo-tipo para serem capturados. A loucura nazista do extermínio reside na precipitação no real de uma redução imaginária, com o intuito de realizar “o judeu” segundo uma imagem que não é outra senão o negativo do próprio homem nazi.

A testemunha foi exposta ao perigo do extermínio, sobreviveu e se expõe à comoção provocada pelo ato de testemunhar. Salvaguardar sua vida psíquica pode obrigá-la a reprimir o afeto, a deslocá-lo, a transformá-lo.

Existe no próprio esforço da transmissão uma traumaticidade inerente ao testemunho, não apenas pela dificuldade de compreensão do outro, senão também devido ao fato de que o sobrevivente, quando testemunha, recebe de forma inversa o efeito de sua comunicação, a desmesura do acontecido.   

Como o homem se torna inimigo do homem e, depois de milênios de progresso civilizatório, pode fazer do seu extermínio o ideal supremo?

Em Aquellos hombres grises, o historiador Christopher Browning, nos apresenta uma investigação de campo sobre o Batalhão 101 do Terceiro Reich onde constata que o traço comum depreendido de centenas de horas de entrevistas com sujeitos ordinários que chegaram a cometer crimes monstruosos é o desejo de ser como os outros, de ser parecido com o grupo ao qual se pertence. A incapacidade de dizer não por medo de ficar só. Dizer não à pressão do grupo é nosso sentimento quando Hannah Arendt nos conduz à tese da banalidade do mal (Eichmann en Jerusalén), no sentido de que o monstro não é basicamente uma personalidade maligna senão, principalmente, um burocrata cinza manipulado e seduzido pelos benefícios que lhe outorga sua posição de amo.
Quando o psicanalista recebe um sujeito marcado por essas experiências extremas, como acompanha estas experiências limite? Aproximando sua humanidade, o psicanalista procurará um reencontro com a temporalidade psíquica do paciente e uma reapropriação de seu foro interno que permita discriminar o passado do presente, visando que o paciente não permaneça totalmente preso no trauma que satura de significação todos os âmbitos de sua vida psíquica. 

Se tomarmos o segundo encontro de Favalli com um “mano” como metáfora, podemos construir um modelo de “mano” como sendo uma criança invadida precocemente por angústias catastróficas; uma criança confrontada com o não-cuidado materno através de uma auto sustentação rígida que mascara o segredo de sua fragilidade e que, frente à repetição do vazio devastador em situação de crise, não suporta uma proximidade humanizante. O desafio clínico é como montar uma técnica de aproximação que construa pontes transfero-contratransferenciais mais seguros. Tentar re-historizar seu tempo vivencial e ajudá-lo a rehabilitar sua própria história pessoal (M. Viñar).

2018

“Precisamos dar um susto na população para acalmar os mercados” diz um executivo numa tirinha do cartunista espanhol El Roto. Vivemos um momento histórico onde é imposta a nós A economia do medo como aponta o jornalista Joaquín Estefanía. O intelectual tcheco Ivan Klima escreveu: “Diferentemente dos anteriores usurpadores do poder estas estruturas de poder não têm rosto nem identidade. São invulneráveis a golpes e palavras. Seu poder é, talvez, menos ostentoso, menos declarado abertamente, mas é onipresente e não para de crescer”.      

Referências                 
Este artigo se baseia num trabalho do autor (Ricardo Jarast) publicado no Número 61 da Revista de Psicoanálisis da APM (Madri) em 2010 e no livro de sua autoria Tiempos difíciles, el siglo XXI y la responsabilidad del psicoanalista, Ed. Biebel, Buenos Aires, 2013. 

Tradução de Abigail Betbedé         

Imagem: "El Eternauta" dibujo de Francisco Solano López.