Ventanias em mar já agitado: Negociando nossa contratransferência no tratamento de pacientes adictos

Dr. Lisa Juliano, Psy.D
 

Pacientes perdem a capacidade de se vincular e se relacionar devido ao uso compulsivo de substâncias que alteram a mente. Tratá-los parece tarefa de Sísifo e há desafios singulares a considerar.

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Inúmeras vezes os pacientes perdem a capacidade de se vincular e de se relacionar devido ao uso compulsivo de substâncias que alteram a mente. Tratar esses pacientes pode parecer uma tarefa de Sísifo e há desafios singulares a considerar. Obstáculos significativos ao tratamento surgem da nossa contratransferência negativa que, com esses pacientes, pode ser bastante intensa. Uma fonte singular desse pessimismo em relação à adição é o fato de ele poder existir antes mesmo de os pacientes virem à consulta. Podemos vivenciar preconceitos sociais de maneira inconsciente, mantidos há muito e não reconhecidos, em relação às pessoas que abusam de álcool e de drogas. Esses preconceitos podem nos ter acompanhado desde a infância, enraizados a partir de uma história pessoal ou familiar traumática relativa ao abuso de substâncias. Esses sentimentos não expressos se desencadeiam no curso do tratamento de pacientes adictos, juntamente com os sentimentos adversos surgidos a partir dos desafios próprios do tratamento.

As adições podem originar-se de falhas do sistema de apego em momentos fundamentais do desenvolvimento. Quando pessoas adictas tentam ficar sóbrias, sua principal fonte de autorregulação deixa de estar disponível. Elas precisam passar a administrar os estressores da vida com um sistema frágil de self. Há também o sentimento esmagador de vergonha associado à necessidade das drogas e/ou álcool para conseguirem sentir-se normais (Gill, 2014). A seguir, começa a surgir a percepção de que a sobriedade é apenas o começo. O adicto que recentemente conseguiu ficar sóbrio pode ter expectativas irreais acerca da terapia – que agirá como droga. Há decepção e confusão quando isso não acontece. Não é surpresa que o terapeuta possa desenvolver uma infinidade de respostas negativas ao tratamento de uma pessoa adicta, apesar dos seus melhores esforços. É necessário estar especialmente atento e monitorar a contratransferência em relação a pacientes adictos e estar alerta para a possibilidade de enactment.

Bromberg (2006) sugere que o paciente difícil precisa de algo quase impossível de propiciar – um relacionamento baseado em “honestidade e segurança afetivas” (p. 108). O que poderia ser mais difícil para o analista do que a tarefa (com medos potencialmente dissociados, ansiedades, desprezo não reconhecido e talvez algumas dúvidas sobre seu uso pessoal de substâncias) de se ligar de maneira autêntica a um paciente para quem a autenticidadequase foi neutralizada? Desse modo, o foco do tratamento precisa incluir a disposição de investigar padrões de apego de maneira específica, bem como a descompactação dos padrões singulares que estabeleceram as bases para o início da sujeição ao abuso de substâncias. Ao mesmo tempo, o analista precisa contrabalançar as inevitáveis apreensões inerentes ao trabalho com pacientes adictos. O analista vacilará entre sentir-se a pessoa mais importante para o paciente e sentir-se como pessoa sem valor, impotente, censuradora e punitiva

A miríade de contra respostas negativas a pacientes adictos não reside apenas no comportamento manifesto do paciente. Hisrsh (2008) sugeriu que o status da vida atual do analista tem influência no desenvolvimento da sua contratransferência negativa. Muitas vezes isso pode combinar-se com nossa própria ansiedade a respeito do uso e aos usuários de substâncias, a ambivalência a respeito do nosso desejo de sustentar uma aliança viável diante de uma eventual sociopatia, atuação, mentira, resistência e recaídas possíveis. Consequentemente, a tarefa pode tornar-se imensa, talvez até intransponível. A tentação de ficar mais passivo é grande, ainda que seja apenas para se proteger de eventuais fracassos (Slochower, 2006). Recentemente, uma paciente há pouco tempo sóbria contou-me que estava muito decepcionada por eu não estar “sóbria” também. Passou a questionar com desprezo o que possivelmente poderia eu saber a respeito do seu sofrimento e que eu a enganara. Minutos depois, pediu desculpas, mas era evidente que eu a decepcionara e não poderia haver compensação suficiente.

Somando-se ao impulso de ser protetor de maneira passiva (ou de ser hostil e confrontador de maneira ativa) está a realidade (no caso do paciente adicto em recuperação) do Programa dos 12 Passos. E com esse programa surge a realidade do padrinho. Podemos nos esforçar para prosseguir de forma eficaz em um tratamento focado em insight (pedindo ao paciente para colaborar conosco) enquanto todo o tempo restante ele passa em uma abordagem orientada para a ação com outra pessoa a quem ele “se reporta” e que compreende de forma mais satisfatória a sua experiência. Será que a analista por meio de enactment se coloca como objeto bom transformando o padrinho ou o programa em objeto mau? Ou a analista precisa tolerar ser às vezes o objeto mau já que não gratifica o paciente da mesma maneira que a Irmandade pode fazer, com aplausos e encorajamento? Como analistas, devemos deixar de lado nossa própria necessidade de onipotência a respeito da vida desses pacientes e compartilhar os holofotes com um desconhecido capaz de desempenhar funções importantes que nós não podemos (Read, 2002). Existe potencial para uma rivalidade inconfessa. O paciente também pode dividir o analista e o padrinho, jogando um contra o outro. Com grande probabilidade, o padrinho não é profissional formado em saúde mental, portanto, é da nossa responsabilidade estarmos atentos a todas as minas terrestres existentes nesse campo compartilhado. É preciso tolerar a perda da nossa onipotência no tratamento. O paciente pode sentir necessidade de privilegiar a sabedoria do padrinho em detrimento da nossa contribuição. Como a recaída está sempre no horizonte, podemos também alternar entre sentimentos de segura autoridade ou de total impotência diante da adição em si. 

Os pacientes em início de recuperação podem empregar identificação projetiva durante o tratamento. O paciente projetará no analista (nos melhores momentos) partes de si inacessíveis à expressão verbal. No pior sentido, o paciente fará isso para se livrar de aspectos indesejáveis de si, inclusive de desejos, vergonha e carência extrema. O analista conservará esses aspectos, tornando-se assim um objeto facilmente rejeitável e avaliado com desprezo, até esses aspectos poderem ser redefinidos e reintroduzidos para o paciente.

As duas vinhetas clínicas seguintes ilustram como padrões de transferência/contratransferência prosseguem na definição dos contornos do tratamento com pacientes aditos.
 
Josie
Os pais de Josie abusavam de álcool. Sua mãe foi colocada em reabilitação e teve inúmeras recaídas. Josie relatou ter ficado sob os cuidados de inúmeras “babás” que eram apenas empregadas domésticas aleatórias, sem qualquer experiência com crianças. Contou episódios de abusos sexuais que foram ignorados e de professores que a maltratavam na aula de espanhol. Começou cedo a usar drogas e a beber com o filho adolescente de uma das “babás”. Josie logo aprendeu que não era possível confiar em figuras de autoridade, pois havia apenas crueldade, humilhação e descaso. Não seria possível esperar que um terapeuta fornecesse algo além disso e o AA era o paraíso dos julgamentos e restrições. Trabalhar com alguém que desejava desesperadamente um vínculo, mas, ao mesmo tempo, lutava contra isso a cada passo, era um ato de equilíbrio. Josie me invejava e odiava por eu permitir que ela pagasse menos enquanto ainda estava desempregada. Invejava a vida que, em sua fantasia, eu tinha. Desafiava-me para que eu a expulsasse do tratamento, a repreendesse e humilhasse de maneira que ela pudesse voltar ao isolamento familiar e ao abismo do descaso. Seu comparecimento era incerto e suas faltas em geral eram precedidas por longas mensagens de voz. Quando comparecia à sessão, quase sempre estava imersa em afeto ansioso e defensivo, mas desafiador.

Certo dia, contou-me calmamente que sua filha tomara um gole de chá gelado da geladeira. Mas era chá com vodca. Fiquei chocada com a notícia e o afeto concomitante. Esse foi meu teste, finalmente eu a rejeitaria, como ela temia/desejava? Respondi com algo que significava: “Tenho medo que você finalmente faça algo do qual será impossível retornar”. Embora Josie atualmente estivesse no AA, continuou a esconder, a mentir, a prometer e a não cumprir. Acabei complicando mais ainda um padrão de apego já complicado, colocando-me não só como autoridade a quem se devia enganar e contra quem se devia rebelar, mas como figura maternal cuidadosa, mas assustada, a ser consolada e tranquilizada de qualquer modo que estivesse disponível. Josie obedeceu. Ficou sóbria. Mas os outros comportamentos associados e os padrões de apego permanecem. 
 
Dieter
Dieter representa um padrão de apego oposto. Quando Dieter tinha nove anos, os professores alertaram seus pais que ele era rigoroso demais consigo mesmo. Aos 14 anos de idade, estudou saxofone com tanta intensidade (para poder ser admitido em uma academia de música) que desenvolveu uma enorme bolha no lábio. Por isso, não pôde tocar durante semanas. Um ano depois, Dieter impediu que seu pai se suicidasse com uma pistola. A partir dessa experiência, concluiu que precisava ser perfeito e eternamente feliz. Como isso não fosse possível, Dieter começou a beber e usar drogas. Era a única maneira de conseguir criar ao menos uma fachada de menino perfeito, sem qualquer preocupação no mundo. Os detalhes da sua “queda ao fundo do poço” foram virtualmente cinematográficos. Em sua festa de aniversário literalmente tentou beber até morrer – a ponto da esposa quase o abandonar. Caiu na rua, deu um jeito de chegar em casa e implorou seu perdão. No dia seguinte, Dieter compareceu à sua primeira reunião do AA. Começou terapia comigo duas semanas depois. Dieter declarou que “sempre pensara em fazer terapia”, mas sempre dava um jeito de se convencer a não fazer. Afirmou que nesse momento “não tinha escolha”.

Na superfície, Dieter é um paciente modelo. Nunca se atrasa, paga pontualmente, sempre dócil e alegre. Nunca se cansa de relatar como é “ótimo” estar sóbrio e como está “grato”, apesar dos desafios. Eu percebia que havia algo errado. Às vezes, eu o observava na sala de espera. Ele se sentava de cabeça baixa e o corpo frouxo. A expressão do seu rosto era de desânimo, desesperança e derrota. Finalmente, decidi abordar a questão. Ele ficou surpreso, pairou no ar a possiblidade de uma represália hostil. Ao contrário, ele admitiu que se sentia obrigado a simular a expressão mais feliz possível, até mesmo na terapia, para proteger nossa ligação, para preservar minha boa avaliação a seu respeito, para nos preservar. Foi quando tomei conhecimento da sua história pregressa. Ele encontrara um modo de navegar no mundo, que aplicou na terapia e nas reuniões dos AA. “Não posso deixar você ... nem ninguém ver a Besta”, disse finalmente. Mas, de certo modo, Dieter valorizava essa condição de Besta. Confiava nela para impulsionar suas ambições musicais. Apesar de temer que esse “Self Besta” o afastasse das pessoas que amava (portanto, precisava ficar oculto), ele também exigia ser nutrido. Dieter achava que a bebida e as drogas satisfariam essa impossível barganha interna. O desafio com Dieter é perceber que ele resistirá e detestará qualquer ambiente em que tenha permissão, em que, em certo sentido, haja a exigência de ser vulnerável, para compartilhar seus demônios. Era tentador permitir que Dieter cuidasse de mim na sessão, permitindo-lhe permanecer complacente e “fácil”. Não obstante, precisávamos enfrentar “a Besta”.

Tratar essas pessoas com dependência química inúmeras vezes suscita mais perguntas do que respostas. Não só devemos manter em mente a sobriedade do paciente, mas também de que maneira mantê-lo em mente. Manter em mente esses pacientes (como pessoas, não só seus sintomas) de formas que antes lhes foram negadas, parece-me um primeiro passo cabível. Contudo, temos uma responsabilidade maior que pode nos sobrecarregar: administrar nossas ansiedades, medos, frustrações, raiva e perda da onipotência permanecendo ao mesmo tempo autênticos e disponíveis. No mínimo, esse é um ato de delicado equilíbrio.
 
Referências
Gill, R. (2014), Struggling with Abstinence. In R. Gill (ed.), Addictions from an Attachment Perspective. London: Karnac Books.
Bromberg, P. (2006), Awakening the Dreamer: Clinical Journeys. Mahwah, NJ: The Analytic Press.
Hirsh, I. (2008), Coasting in the Countertransference. Conflicts of Self Interest between Analyst and Patient. New York: The Analytic Press.
Slochhower, J A. (2006), Psychoanalytic Collisions. Mahwah, NJ: The Analytic Press.
Read, A. (2002), Psychotherapy with addicted people. In Weegman and Cohen (eds),The Psychodynamics of Addiction. London & Philadelphia, PA: Whurr Publishers.

Tradução: Tania Mara Zalcberg