Todo processo analítico começa com um jogo de demandas e ofertas. Quem procura (ou, como muitas vezes, é encaminhado a) um analista, o faz porque tem um sofrimento e demanda seu alívio ou transformação. Durante um número variável de entrevistas, faz um inventário de acontecimentos vitais e responde perguntas até receber a oferta de começar a travessia incerta de uma análise. Nesse tempo, vai recebendo outras ofertas, explícitas ou não, para aquilo que demanda. Uma é a da escuta, a de receber atenção para aquilo que tem a dizer, sem importar muito a forma como seu dizer se manifesta. O analisando percebe também que, a partir de seu relato, o analista oferece, de quando em quando, outro dizer. Um dizer que procura ter qualidade interpretativa, de hipótese plausível, de perspectiva alternativa e que procura ter algum efeito. Nesse interjogo, alguns acordos explícitos vão sendo feitos. Combinados sobre o horário, sobre a frequência e duração das sessões, sobre honorários e sobre a promessa de confidencialidade. Paralelamente, o analista oferece uma atitude de neutralidade (‘benevolente’, diria Freud (1912)) e abstinência, ainda que não de forma declarada. Isto é, sua atitude está circunscrita dentro de uma ética que sustenta e que singulariza o processo (Szasz (1971), Fromm (1976), Etchegoyen (1984)). O enquadre é entendido como um pacto entre humanos e, como todo pacto, é frágil. Mas muito mais sutil e impossível de antecipar é a ideia de criar junto com o paciente uma relação íntima entre os participantes do par analítico.
A intimidade é uma forma de vínculo na qual os envolvidos experimentam uma vivência, uma qualidade de laço em que se tem um nível de compromisso particular e exclusivo com o que se faz e diz. Ela é parte do processo analítico e se experimenta a partir do compromisso do analista de ser ‘agente do bem’ do analisando (Szasz, ob.cit). Em paralelo ao princípio da livre associação, ocorre a oferta de discrição, privacidade e estímulo à confiança que, como assinalei anteriormente, se sente mais do que se fala sobre.
Uma pequena vinheta clínica pode ajudar a ilustrar o que foi dito até agora.
Quando iniciava minha formação psicanalítica, tive uma paciente com queixa de obesidade mórbida que decidira submeter-se a um processo de cirurgia bariátrica para sair do sobrepeso. Ela manifestava ansiedades muito significativas, especialmente em torno da necessidade de ser anestesiada, com fantasias de ‘ficar dormindo para sempre’, manifestações de sua ansiedade de morte. Trabalhamos intensamente este e outros aspectos envolvidos na sua decisão sobre a cirurgia. Ao final da última sessão antes da operação cirúrgica, ela se levantou do divã e disse que tinha muito medo de morrer e que desejava que eu a abraçasse para poder ‘ir tranquila’ por algumas semanas. Assim o fiz. Logo me culpei, sozinho, deitado sobre o divã no qual me formava. Estava convencido de ter me afastado do ideal analítico que tinha naquele momento. Hoje faria o mesmo, mas sem culpa. Minha paciente, diante de um medo quase incoercível, precisava de uma manifestação de intimidade comigo diferente daquela que as palavras proviam.
Quer dizer que agora, mediante racionalização, sou mais propenso a contra atuar com meus analisandos? Não, apenas acredito estar mais consciente dos limites que a via verbal tem para expressar o que o outro nos remete.
A intimidade, entendida como necessária alavanca para implementar os mecanismos da análise, vem a partir de um processo, de uma insistência e de uma atuação por parte do analista destinadas a mostrar que ‘se leva muito a sério’ o que o analisando diz ou faz e que a análise é algo sério, o que não significa ser fúnebre ou isenta de tensões.
Talvez um dos aspectos mais difíceis de construir nesse microclima com cada analisando seja o de o psicanalista oferecer-se para ser depositário de todas as paixões, mas não as corresponder.
Ainda assim, inclusive dentro do mais idílico dos cenários, com os mais inclinados a transitar pelo caminho do processo analítico, como poderiam ser os candidatos em formação, esta oferta encontra dificuldades para ser implementada. Acontece que, ainda dentro da mais íntima das relações, as pessoas percebem que há coisas que não podem contar aos outros. Isso acontece em parte devido à existência de uma amnesia, um esquecimento constituinte, o recalque, que impede que nos apeguemos estritamente ao ‘falar tudo’. Outras vezes o paciente não conta algo porque resiste, opõe-se sem saber ao propósito da análise. Pode-se compreender essa resistência se pensarmos que o sofrimento (o sintoma) é seu capital psíquico. Também porque entendemos que as pessoas procuram um analista para mudar e não mudar ao mesmo tempo, efeito da natureza conflitiva do inconsciente. Em outro nível, isso se deve ao fato de que muitas vezes há ganhos secundários, benefícios inconscientes na permanência do sintoma, que se transformam na impossibilidade de entregar-se por completo à relação analítica. Insisto em dizer que isso acontece em todo processo analítico, o que nos ajuda a entender, em parte, por que ele é normalmente longo. Se a dificuldade de entrega se firmar ao ponto de imobilizar-se, pode acabar se tornando um impasse ao processo ou interrompê-lo.
O que me interessa destacar, no entanto, é a aporia implícita na oferta de uma intimidade na qual absolutamente tudo caiba. Isso se complexifica ainda mais em um momento cultural em que as redes sociais permitem a abertura, sem esforço algum, de janelas à subjetividade.
Hoje em dia, 140 caracteres, um ‘like’ ou ‘dislike’ podem bastar para sentir que se diz de si, e ainda com a promessa de não gerar nenhum vínculo mais profundo. Contamos atualmente com uma série de ferramentas, resultantes da digitalização global, que propõem os benefícios da intimidade sem a necessidade de contato com o outro ou a necessária noção de diferença. Isolado, na medida do possível, dos efeitos que as redes sociais têm e terão no processo de subjetivação, o vínculo analítico se delimita por questões singulares que matizam a intimidade entre analista e analisando. As transferências mútuas, os lugares inconscientes que ambos os atores do processo analítico se atribuem, efeitos de suas histórias, estão em jogo. Isso permite entender aqueles que tiveram experiências com analistas distintos e observaram diferenças em relação à facilidade ou dificuldade de se abordar certos tópicos com cada um.
A intimidade criada em um processo de análise advoga pela liberdade de expressão, é seguidora da tradição de Voltaire, quando diz: ‘Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-las’ – mesmo sabendo que esse é um ideal impossível de ser cumprido à risca. Essa pretendida intimidade, vale dizer, só poderá ser praticada no âmbito da psicanálise em um contexto de Estado de Direito e liberdade.
Como o amor eterno e sem fissuras, a intimidade na psicanálise é uma oferta impossível de ser cumprida, mas indispensável para acender as luzes, que se tratam apenas com mais luzes...
Miami, março de 2017.
Referências
Etchegoyen, R.H. (1984).
Los fundamentos de la técnica psicoanalítica. Amorrortu: Bs. As.
Freud, S. (1912).
Consejos al médico en el tratamiento psicoanalítico. Amorrortu: Bs. As.
Fromm, E. (1976).
Etica del psicoanálisis. Labor: Madrid.
Szasz, T. (1971).
La ética del psicoanálisis. Antorcha: México.
Voltaire, M. ‘Frases célebres’, en
www.sabidurias.com