É um fato quase universalmente aceito que a prole humana vem ao mundo com uma desvantagem de maturação significativa em relação aos outros mamíferos, em outros aspectos menos evoluídos.
Este estado, que se deu por chamar prematuração, representa um período prolongado no qual o recém-nascido adquire pautas e ferramentas que o tornarão apto para a vida extrauterina, o crescimento e desenvolvimento.
Mais além do evidente, como a incapacidade de se locomover por si próprio para obter alimento ou manter-se aquecido o suficiente para sobreviver, existe outro aspecto da imaturidade que provocou grande interesse para disciplinas e autores distintos, dentro e fora da psicanálise.
Ao observar um bebê recém-nascido por alguns instantes, nota-se uma evidente falta de coordenação motora nele.
Em estado de relaxamento seu corpo permanece em repouso quase completo. Porém, quando atravessa uma situação de necessidade, surge certa tensão, seu corpo se agitará desordenadamente, veremos seus membros se contraindo e estendendo como parte de respostas reflexas descontroladas e, finalmente, ele gritará ou chorará até ser acalmado de alguma forma por um terceiro que o assista.
Pensemos agora nesse bebê semanas ou meses antes de seu nascimento.
Seu universo era outro.
Seu corpo se mexia no amparo da cavidade uterina que não permitia movimentos bruscos, controlando as respostas reflexas violentas. A pressão ambiental, acrescida pelo tônus uterino, se transmitia homogeneamente pela superfície de sua pele, já sensível, provendo-lhe uma pele extra. A temperatura, estável, o mantinha abrigado no corpo materno.
Não tinha a necessidade de respirar por si mesmo e não sentia fome. Ao abrir os olhos nos últimos meses, caso o ventre materno estivesse exposto à luz do sol, ele conseguia ver iluminado por uma luz avermelhada e através de membranas transparentes, o corpo materno e seu próprio corpo, sem solução de continuidade.
De repente algumas contrações violentas, uma passagem interminável através de um canal demasiadamente estreito ou manobras adequadas no centro cirúrgico e um instante de sufoco dão lugar ao nascimento.
E com ele a perda de quase todas as sensações conhecidas, todos os mecanismos de homeostase mudam. A estabilidade desaparece. O ambiente se torna incômodo, pouco amistoso. Aquela pele que estava por cima da sua formada por humores e membranas, aquela cobertura que regulava seus movimentos e impedia a incômoda desregulação motora, desapareceu.
Os corpos se separaram.
A experiência do nascimento é, também, uma experiência de fragmentação.
Sigmund Freud dá conta destes primeiros momentos no Projeto para uma psicologia científica onde fala da necessidade de uma ação específica externa que acuda para aliviar uma tensão interna, algo que o humano ainda não é capaz de conseguir sozinho.
O bebê tenso chora, sendo o choro uma manifestação reflexa do mal-estar. Outras espécies apresentam condutas mais complexas frente à necessidade: aproximar-se ao corpo materno, começar a perambular, etc.
O humano emite um grito sem que exista ainda um dentro ou fora para endereçar a causa do incômodo. Este mesmo grito poderá retroalimentar a tensão e o choro.
A mãe acolherá a demanda e significará o grito desde seu próprio desejo, como fome, solidão ou frio.
É o desejo da mãe, seu desejo de filho, que sai ao encontro do bebê.
E quando a mãe assiste com sucesso o bebê, uma primeira experiência de prazer registra-se nele, assim como na mãe também surge um forte sentimento de satisfação, inaugurando entre ambos a experiência de um sentimento compartilhado. É este sentimento compartilhado que transforma a necessidade em desejo e outorga a este encontro especificidade humana.
Segundo Freud, o ego é ego corporal. Porém, a percepção deste corpo não parece estar dada desde o início. Pelo menos não como unidade, existe sim como fragmentos, sede de tensões ou de alívio. Residência das pulsões autoeróticas, a boca, a fome, a pele, o frio.
Entretanto, qual será o acontecer psíquico determinado que transforme um corpo desmembrado em um corpo (mais ou menos) unificado?
A partir dos desenvolvimentos freudianos, Lacan nos traz novidades aprofundando-se nessa transformação.
Lacan explica que entre o sexto e o décimo oitavo mês de vida a cria humana é capaz de se reconhecer jubilosamente frente a sua imagem no espelho. Esta característica, a alegria que expressa, é radicalmente diferente ao fenômeno que remete a outras espécies, as quais rapidamente perdem interesse pela imagem refletida.
Esta imagem -para Lacan- constituinte no ser humano, captura a criança fazendo-a se reconhecer, desejar-se nela e construir-se de forma retroativa desde sua fantasia de corpo fragmentado.
Seu olhar fica capturado pelo reflexo que inclui, também, o olhar da mãe que a sustenta. Acende nela o desejo de ser um para esse olhar, sendo um com esse olhar.
Entra em cena o narcisismo primário que, através de uma identificação fundante, vai na direção da constituição do corpo agora unificado pela imago externa que o captura e o aliena. Isso tudo em um processo que não dura menos de um ano de vida.
No entanto, o percurso dos primeiros meses ainda não está explicado: quem olha esta imagem? Quem é capturado na imagem? Qual fragmento é o responsável por reunir os outros na alienação fundante?
Neste ponto, Winnicott coloca à disposição sua Teoria do desenvolvimento emocional do indivíduo que inclui a história total do ambiente específico de cada criança individual.
Donald Winnicott considera um potencial herdado, o selfcentral, que deve experimentar continuidade de existência para adquirir uma realidade psíquica e um esboço corporal pessoal.
E esse potencial é o potencial de crescimento.
À diferença de Freud, que considera a experiência de tensão, satisfação e frustração um fato fundamental sob a égide do id, Winnicott introduz um ego rudimentar, porém já capaz de vivenciar as experiências, imprescindível para alcançar um nível de organização psíquica adequado à conquista de uma experiência pessoal.
Será através da intermediação deste ego que os fragmentos corporais, os membros, intestinos ou choro se reunirão em um self nascente. As funções neurocognitivas e o universo sensível ficarão fortemente aderidos ao ego, favorecendo a configuração de dois espaços, um exterior e outro interior, delimitados por uma membrana.
B é trazido pela sua mãe, M, ao consultório com três semanas de vida. Quase no final da consulta, M refere que deverá partir por três semanas para uma viagem de negócios inadiável. À pergunta de por que não levar B consigo, ela se mostra intransigente, “seria incômodo”. “É impensável”. O pai, nesse momento desempregado, concordou com ela. Com seis meses B é trazido novamente com outro motivo de consulta: desenvolvera uma dermatite atópica severa que o acompanharia por anos de sua vida.
“Impensável”, “um incômodo”.
Será, talvez, esta deficiência na constituição de uma Membrana adequada entre o interior e o exterior, uma pele saudável, tão linear com a dificuldade para “pensar” no bebê como pessoa?
Para Winnicott, o que existe no começo da vida é
“... um punhado de anatomia e fisiologia, junto com o potencial para desenvolver-se em uma personalidade humana. Existe uma tendência geral ao crescimento físico e uma tendência ao desenvolvimento psíquico...”.
Winnicott considera a continuidade da linha da vida como a base da teoria do desenvolvimento; a qual é a soma das experiências, positivas e negativas, sejam estas últimas assistidas e regradas ou não. Nenhum conteúdo dessa experiência se perderá.
Potencial de desenvolvimento, ego rudimentar, self e continuidade da experiência; são os conceitos básicos sobre os quais Winnicott apoia sua teoria do desenvolvimento.
O pai de V e M, gêmeos de quatro meses de vida, mostrou-se ciumento pelo tempo e trabalho que sua esposa, C, dedica às crianças. Ele exige uma viagem “de casal”, sem filhos, com duração de duas semanas. C aceita fazer a viagem apesar da advertência do pediatra sobre a importância de sua presença durante os primeiros meses de vida.
Dois meses mais tarde ambos os gêmeos desenvolveram hiper-reatividade brônquica, “asma”, que os levou à primeira de várias internações.
Poderíamos relacionar o surgimento da doença, esquisita principalmente pela coincidência temporal em ambos, com o “abandono temporal” da função de sustentação, à ruptura na continuidade necessária para a constituição psíquica precoce?
A integração se trata, então, de um conjunto de processos de elementos motores e sensoriais sobre os quais se assenta o narcisismo primário. Sustentados pela tendência ao sentimento de existir.
Winnicott postula uma elaboração primária imaginativa sobre o funcionamento corporal para dar conta de um novo ser humano que começou a ser e a existir, conjugando uma experiência que pode agora chamar-se de pessoal.
Situa a integração no processo de trânsito entre a dependência e a independência.
A esses requisitos, acrescenta a necessidade de um ambiente suficientemente bom.
“Não existe essa coisa chamada bebê”. Com essa admirável síntese, ele dá conta da dependência extrema ao ambiente nos primeiros momentos de vida, quando para o bebê ainda não existe diferença entre eu e não eu; quando o bebê constitui, para si mesmo um só corpo com a mãe em uma tentativa de dar continuidade ao estado anterior ao nascimento.
Talvez encontramos nele, como em nenhum outro autor, uma referência direta à indispensável função do ambiente, a função materna primária. Definida, também, como suficiente.
Em Winnicott, o adjetivo suficiente toma pleno sentido, pois além de referir-se à presença que acrescenta e é necessária ao ser, refere-se também à que transborda e é necessário evitar.
P é uma senhora alegre e muito agradável, está feliz com seu bebê, R, tanto que não consegue separar-se dele, nem quando dorme.
R dorme no leito parental desde seu nascimento, há mais de dezoito meses; por sua parte, quem abandonou esse leito foi o pai, que escolheu ocupar o dormitório que seria de R.
Esta situação se prolongou durante os primeiros anos de vida, com tentativas de solução que fracassaram.
Frente à indicação pediátrica de consultar um especialista em psicologia, a mãe decide trocar de pediatra; o pai se manifesta contrário à decisão, mas acaba por declarar-se impotente.
Aos cinco anos, o peso de R o coloca em um extremo severo de obesidade. Além disso, tem mais dificuldade que a média de seus companheiros em permanecer na escola. Foi sugerido novamente realizar uma consulta psicológica. Uma vez mais assistimos o fracasso das funções maternas e paternas. Este fracasso das funções de sustentação e de corte parece marcar o destino de um indivíduo em desenvolvimento.
A fragmentação que Winnicott propõe a partir de sua clínica é ainda mais complexa, não só o corpo está em fragmentos, mas também o tempo.
“Acredito que, no começo, o bebê não se dá conta que ele é o mesmo nos momentos em que está sentindo isto e aquilo em seu berço ou desfrutando das sensações corporais quando o banham daquele que, em outros momentos, chora demandando satisfação imediata, tomado pelo anseio de obter ou destruir algo se não é satisfeito com leite...”
“... e acredito que não existe integração entre uma criança adormecida e uma acordada”.
A integração para Winnicott compreende dimensões espaciais e temporais.
Finalmente, Winnicott faz também referência ao sonho como um retorno ao estado de desintegração, ou melhor dizendo, de não integração. Também define a capacidade da criança para entrar neste estado sem risco para sua continuidade, como precursora da capacidade do adulto de estar a sós.
“É somente estando a sós (na presença de alguém) que o infante consegue descobrir sua própria vida pessoal... Nesse cenário, a sensação ou o impulso serão sentidos como reais e se transformarão em uma experiência genuinamente pessoal”.
“A sós na presença de alguém”, este conceito genial de Winnicott, quase como um kōan, revela a importância de uma presença não intrusiva. Compreendemos quão fundamental a maternagem é para o desenvolvimento da segurança pessoal, ou seja, a presença de alguém disponível, não demandante, que decodifique os sinais ambientais e que os transforme com sua presença, às vezes total, outras parcial, sustentando aquilo que enriquece a experiência desde o prazer, sem que este acabe com o ser nascente.
“O indivíduo que desenvolveu a capacidade de estar só é capaz de redescobrir em qualquer momento o impulso pessoal, o qual não se dissipa, porque o estado de solitude é algo que implica sempre, mesmo que paradoxalmente, a presença de alguém”.
Jamais recuperamos a totalidade daquilo que perdemos no momento de nascer, mas tudo o que conquistemos depois, suficientemente assistidos, nos acompanhará em nossa solitude até o final.
Bibliografia
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Winnicott, D. W. La teoría de la Relación Paterno-filial. El Proceso de Maduración en el niño. Editorial Laia.
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Winnicott, D. W. Objetos y fenómenos transicionales. Estudio de la primera posesión No-Yo. Escritos de Pediatría y Psicoanálisis. Editorial Laia.
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Winnicott, D. W. La capacidad para estar a solas. El Proceso de Maduración en el niño. Editorial Laia.
Davies, M . Wallbridge, D. Limite y espacio. Introducción a la Obra de Winnicott. Amorrortu editores.
Tradução Marco Rovere
Revisão técnica Abigail Betbedé