A psicanálise e a política

Dr. Katharina Rothe
 

Após a eleição presidencial de 2016 nos Estados Unidos uma onda de estarrecimento pareceu percorrer a comunidade psicanalítica (em sua maioria liberal) da cidade de Nova York.

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Após a eleição presidencial de 2016 nos Estados Unidos uma onda de estarrecimento pareceu percorrer a comunidade psicanalítica (em sua maioria liberal) da cidade de Nova York. Após décadas de psicanálise convencional enfocando a vida íntima dos nossos pacientes – como se de algum modo isso fosse separado do social e do político que moldaram sua organização psíquica e seus conflitos (inconscientes e conscientes), as vozes ficaram tão mais altas que aparentemente reconheceram o ponto cego pela primeira vez. Surgiram discussões relativas ao direito ou até mesmo ao dever de os psicanalistas permitirem que ‘o político’ adentrasse a sala de análise. De repente, até os psicanalistas assim denominados clássicos pareciam abordar ‘o político’ nas sessões. 

O que teria acontecido? Por que antes de mais nada vivemos décadas de uma psicanálise (convencional) aparentemente apolítica? Que forças a mantiveram assim? E o que mudou? Para responder a essas questões, primeiro abordarei o que geralmente queremos dizer ao nos referirmos a ‘político’, antes de esboçar determinados aspectos da psicanálise e como o político inevitavelmente desempenha um papel em como e por que as pessoas sofrem. 

Neste país, quando as pessoas se referem a algo como ‘político’, querem dizer política de uma organização, conflitos de poder, status e alianças (por exemplo, em um ambiente de trabalho) ou referem-se à ‘política’ do sistema político dos Estados Unidos com dois partidos principais opostos – o democrata e o republicano. Se uma pessoa se considera política, ela seria ‘liberal’, ‘progressista’, ‘democrata’ ou ‘conservadora’ ou, às vezes, ‘libertária’ (que significa liberal do ponto de vista social, mas do ponto de vista econômico contrária a qualquer interferência do governo em questões individuais ou corporativas). Ao tornar-se norma os psicanalistas se absterem da ‘política’ ou do ‘político’ na sala de análise em meados do século XX, eles costumavam pensar em abster-se de declarações políticas de apoio ou oposição a um partido ou de expressar opiniões em questões específicas da ‘política’. Sugiro que diferenciemos ‘política’[1]de ‘político’ como um campo muito mais amplo do que a maneira como as pessoas organizam sua vida em comum e de como pensam a respeito da maneira como ela poderia ou deveria ser organizada. Refere-se a todas as condições sociais em que crescemos e vivemos e como compreendemos o funcionamento dessa organização social complexa.

Gostaria de descrever agora alguns aspectos do movimento psicanalítico desde sua concepção no final do século XIX. Argumento que, desde o início, a psicanálise foi implícita e inevitavelmente política – mas não no ‘senso comum’ do termo. Por um curto período, essa posição política implícita tornou-se explícita: na década de 1920 na Europa, pouco depois da morte de milhões de pessoas na Primeira Guerra Mundial, com muitos soldados sobreviventes voltando traumatizados (em estado de choque) e milhões de pessoas enfrentando imensos problemas sociais, como a pobreza, psicanalistas importantes escreveram sobre esses problemas e abriram clínicas gratuitas para famílias pobres. Para citar apenas alguns exemplos: 
 

Em 1925, o psicanalista alemão Max Eitingon escreveu que seus colegas não poderiam mais argumentar honestamente que ‘o fato de os pacientes pagarem ou não teria qualquer influência importante no curso da análise’. Mas Eitingon apenas anunciava o cumprimento da previsão de Freud, no discurso de Budapeste em 1918, sobre a consciência da sociedade. Nesse discurso, Sigmund Freud negou explicitamente sua posição anterior à guerra ‘de que, aos olhos do paciente, o tratamento não terá seu devido valor reconhecido se o pagamento solicitado for muito baixo’. (Danto 2005) 

Outro exemplo seria o de psicanalistas e críticos teóricos que abordam a questão do antissemitismo moderno que culminou na Alemanha nazista e no Holocausto (por exemplo, Simmel, 1946). Não menos importante, foi a perseguição nazista a psicanalistas judeus e políticos (e a destruição da psicanálise) na Europa e sua sobrevivência por meio da imigração de muitos analistas judeus para os Estados Unidos, o que contribuiu para a perda do seu ‘vigor crítico’ (Brunner & König, 2014 p. 491). Como argumenta Kuriloff, o trauma do Holocausto (por terem perdido entes queridos que foram assassinados, por terem sido perseguidos e obrigados a fugir) levou os emigrados judeus a se conformarem com a corrente médica nos Estados Unidos para se adequar, bem como por medo, não reconhecido, de serem novamente perseguidos (Kuriloff, 2014). Ao mesmo tempo, algumas das decisões de Freud, por exemplo, o fato de Strachey traduzir suas obras e Ernest Jones resgatar a psicanálise e se tornar o ‘principal organizador do movimento psicanalítico’ (Roudinesco, 2016, p. 361), contribuíram para a medicalização da psicanálise.

Além disso, defendo que, quando a psicanálise convencional alegou não ser política, na verdade, era implícita e inevitavelmente política: ou seja, ao determinar de maneira normativa o que seria ‘normal’, ‘saudável’ versus ‘desviante’ ou ‘patológico’. Sempre que um profissional de saúde mental diagnostica e usa os sistemas de classificação de doenças e de transtornos mentais, também faz declarações políticas implícitas a respeito de que comportamentos e formações de caráter seriam socialmente aceitáveis, considerados como ‘bem ajustados’ e quais não seriam e, portanto, precisariam ser modificados.

Contudo, se se deve levar a sério o método psicanalítico (como primeiro passo, exatamente como método), isso nada tem a ver com esse tipo de afirmação do status quo da sociedade. Ao contrário, o método exige abster-se de qualquer julgamento e de enfocar certos aspectos da narrativa do paciente. Em primeiro lugar, devemos escutar com ‘atenção uniformemente suspensa’ (Freud, 1912, p. 111) as ‘associações livres’ (Freud, 1912, p. 116) do paciente. 

 

Pois assim que, em certa proporção, a pessoa concentra deliberadamente sua atenção, começa a selecionar o material diante de si; fixará um ponto em sua mente com especial clareza e, de modo correspondente, desconsiderará outro. Ao fazer essa seleção, a pessoa seguirá suas expectativas ou tendências. Contudo, é exatamente isso que não se deve fazer. Ao fazer a seleção, e seguir suas expectativas, a pessoa corre o risco de nunca encontrar nada além do que já sabe. (Freud, 1912, p 111f)

Como Freud descreve em suas recomendações sobre a técnica psicanalítica, não devemos encaixar uma pessoa em categorias pré-estruturadas, ‘expectativas ou tendências’, para compreender como a pessoa se tornou o que é e como está lidando ou se defendendo dos seus conflitos específicos.

Além disso, estamos envolvidos nas cenas afetivas e interpessoais que se desenrolam entre paciente e analista nas relações de transferência e contratransferência (a repetição de padrões relacionais na relação com o analista ou terapeuta). Essas cenas são sempre simultaneamente sociais e pessoais. Nascemos e fomos criados dentro de dada estrutura social, desde o início não somos apenas seres ‘naturais’ mas também seres sociais. Não se pode separar natureza e criação NdaT no sujeito humano ou, em outras palavras, nossa ‘natureza’ é sempre uma ‘segunda natureza’. O ‘social’ e o ‘biológico’ estão intrincados a partir do nascimento. O método psicanalítico visa trazer à luz os padrões relacionais vigentes na relação analista-paciente. Uma vez que compreendamos as origens sociais e pessoais do nosso sofrimento, teremos mais capacidade de escolher, de maneira consciente, como lidar com a nossa realidade.

Como o sofrimento de nossos (pacientes) é de maneira simultânea profundamente pessoal, mas também social e, portanto, político? Os exemplos possíveis da sala de análise são numerosos, assim sendo, começaremos citando alguns óbvios, ou seja, quando o sofrimento está ligado diretamente às estruturas da sociedade, como é o caso dos efeitos do racismo, sexismo ou discriminação devido à orientação sexual. Outra forma de sofrimento, social e intimamente pessoal, decorre de traumas sofridos pelo impacto de perseguição, tortura, exploração e/ou sobrevivência a genocídio. Esses traumas não afetam apenas os sobreviventes em si que, com frequência, desenvolvem sintomas de TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático), mas afetam as gerações posteriores, especialmente a segunda geração, por transmissão transgeracional estudada de maneira ampla (Barocas e Barocas, 1980; Kestenberg, 1980; Danieli, 1998; Laub, 1998; Grünberg, 2000) e atualmente a terceira geração também (por exemplo, Felsen, 1998, Gradwohl-Pisano, 2012, Ullman et al., 2013).

Por fim, gostaria de dar um exemplo de como a nossa sociedade produz sofrimento que evidentemente será uma realidade incontestável. Com a Teoria Crítica, contudo, analisarei a ‘patologia da normalidade’ (Fromm, 1973, p. 356). Entre as décadas de 1920 e 1960, os teóricos críticos da Escola de Frankfurt enfrentaram a questão de como internalizamos e reproduzimos as estruturas de poder da sociedade. Atualmente, entramos há muito em uma era na qual a coerção se internalizou a ponto de desfrutarmos (e sofrermos) da exploração e comercialização de nós mesmos – se pudermos – para sermos empreendedores ou funcionários cada vez mais ‘otimizados’ esforçando-nos para consumir e acumular. Enquanto nos estágios iniciais do capitalismo, o poder de forma majoritária era imposto diretamente por uma autoridade externa, hoje todos nós internalizamos esse poder e o impomos a nós mesmos e aos outros. Continuamos fazendo assim devido à promessa implícita de realização ou salvação final por meio da prosperidade e do crescimento econômico (para obter mais detalhes dessa tese consultar Decker, 2014; Rothe & Decker, 2019). No entanto, desde a última crise econômica, a disparidade entre os super-ricos e poderosos e ‘nós, os restantes’ aumentou significativamente.

O que acontece quando cada vez mais pessoas sofrem ao perceberem a perda de ‘lucrar’ com a promessa? Por um lado, estamos enfrentando um aumento do nível da assim denominada doença mental, do abuso de substâncias e de outras formas de escapismo. Por outro lado, estamos diante da atração cada vez maior do extremismo de direita, supremacia branca e movimentos anti-imigrantista. 

Em conclusão, a psicanálise convencional parece ter funcionado sob a ilusão de ser apolítica até ser abalada pelo recente aumento do extremismo de direita na Europa e nos Estados Unidos. Neste ensaio, argumentei que embora a posição do analista seja de neutralidade e atenção uniformemente suspensa, o método promove o questionamento e a desconstrução do status quo. Tal como discutido aqui, esse status quo é simultaneamente pessoal e social. O sofrimento humano, os padrões relacionais ‘patológicos’ originam-se tanto da estrutura social quanto das relações familiares íntimas. Na sala de análise, esses padrões estão sendo repetidos em parte com o analista cujo papel é ajudar a trazer à luz as origens do sofrimento. Como resultado, o paciente pode ter um pouco mais de liberdade para escolher como quer lidar com a realidade social e pessoal. 
 
Referências 
Barocas, H.A .& Barocas, C.B. (1980). Separation‐individuation conflicts in children of Holocaust survivors. J Contemp Psychother, 11:6‐14
Brunner, M. &  König, J. (2014). Drive, Overview. Em Th. Teo (ed.), Encyclopedia of Critical Psychology. New York: Springer, pp. 487-492.
Danieli, Y. (1998). International Handbook of Multigenerational Legacies of Trauma. New York: Plenum. 
Danto, E. (2005). Treatment will be free: 1918. In Freud's Free Clinics: Psychoanalysis & Social Justice, 1918-1938.  New York: Columbia University Press, pp. 13-33. Retrieved from http://www.jstor.org/stable/10.7312/dant13180.5, 8/22/19.
Danto, E. (2005). The position of the polyclinic itself as the headquarters of the psychoanalytic movement: 1920. In Freud's Free Clinics: Psychoanalysis & Social Justice, 1918-1938. New York: Columbia University Press, pp. 52-80. Retrieved from http://www.jstor.org/stable/10.7312/dant13180.5, 8/22/19.
Decker, O. (2014). Commodified Bodies. New York: Routledge.
Dimen, M. (2000). The body as Rorschach. Studies in Gender and Sexuality, 1:9-39.
Felsen I. (1998). Transgenerational transmission of effects of the holocaust. Em Danieli Y. (eds.) International Handbook of Multigenerational Legacies of Trauma. The Plenum Series on Stress and Coping. Boston, MA: Springer.
Freud, S. (1912). Recommendations to physicians practising psycho-analysis. Em The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund FreudVolume XII (1911-1913): The Case of Schreber, Papers on Technique and Other Works. London: The Hogarth Press, pp. 109-120.
Fromm, E. (1973). The Anatomy of Human Destructiveness. New York: Holt, Rinehart and Winston.
Gradwohl-Pisano, N. (2012). Granddaughters of the Holocaust: Never Forgetting What They Didn’t Experience. Academic Studies Press. 
Grünberg, K. (2000b). Zur Tradierung des Traumas der nationalsozialistischen Judenvernichtung. Psyche 54, 1002–1037.
Kestenberg JS. (1980). Psychoanalyses of children of survivors from the holocaust: case presentations and assessment. J Am Psychoanal Assoc, 28:775‐804
Kuriloff, E. (2014). Contemporary Psychoanalysis and the Legacy of the Third Reich. New York: Routledge. 
Rothe, K. & Decker, O. (2019). (The Failing of) the Promise of Prosperity and Economic Growth as ‘Narcissistic Filling’ and Right-Wing-Authoritarianism. Talk at the Association for the Psychoanalysis of Culture & Society (APCS) Annual Conference Displacement: Precarity & Community at Rutgers University, 10/25-26/2019. In preparation for publication in 2020.
Roudinesco, E. (2016). Freud. In His Time and Ours. Trans. C. Porter. Harvard University Press. 
Simmel, E. (1946). Anti-Semitism and mass psychopathology. In: E. Simmel (ed.) Anti-Semitism: A Social Disease. New York: International Universities Press.
Ullmann, E. et al. (2013). Increased rate of depression and psychosomatic symptoms in Jewish migrants from the post-Soviet-Union to Germany in the 3rd generation after the Shoa. Transl Psychiatry 3e241. doi:10.1038/tp.2013.17.

[1]O termo remonta à ‘polis’ (cidade) de Atenas na Grécia antiga. 
NdaTNo original: nature and nurture.
 
Tradução: Tania Mara Zalcberg