- A violência é intrínseca ao humano. Em todos os tempos e nas diferentes culturas, em suas múltiplas faces, ela esteve e estará sempre presente. Mas como definir a extensão da violência, o dano provocado por uma ação violenta, se ela é legítima ou ilegítima ou, ainda, se ela é necessária e inevitável? Vemos que a violência não é um conceito absoluto e não se define por si; ela se define em relação a um critério, a um contexto histórico, e precisa ser compreendida pelas coordenadas discursivas de uma época.
Dentre as várias faces que ela pode assumir, assistimos um surto de violência no mundo, gerando um estado de perplexidade que nos interroga e convoca a uma revisão profunda das referências e categorias que balizam o pensar e o agir humano. Os valores, ideais, padrões e códigos da tradição ocidental que regulavam o pensamento político estão sendo postos em xeque quanto a sua validade e pertinência na atualidade.
É difícil discernir se o que estamos vivendo faz parte do ciclo da história ou é resultado de uma transformação de tal magnitude que se apresenta como “novas configurações do mundo”, como propõe Adauto Novaes (2008), ao discutir a revolução provocada pelo poder da tecnociência, da biotecnologia e da digitalização na vida social e política, bem como na subjetividade do homem contemporâneo.
As repercussões destas mudanças, que ocorrem em uma velocidade desconcertante, ainda geram mais perguntas do que respostas, mesmo porque estamos todos imersos nesta cultura. O que sabemos é que a violência permanece nos assombrando e provocando um estado de incerteza e de temor, que tem colocado o mundo em alerta, trazendo à tona o desamparo. Estamos defrontados com os limites: limite da palavra, limite da representação psíquica, limite das normas que regulam o campo social e da relação com o próximo.
Os esforços para compreender este estado de coisas devem envolver os diversos campos do saber, para que possamos dimensionar a extensão de tais acontecimentos.
Embora Freud não tenha desenvolvido a noção de violência como um conceito, ela está no cerne de sua teoria desde a perspectiva do trauma, da agressividade e destrutividade, que são originárias e constitutivas do psiquismo individual e da psicologia social. A psicanálise foi fundada a partir da compreensão de um excesso de opressão social denunciada nos sintomas histéricos. Ao interpelar, desde o seu início, a cultura e acolher o sofrimento humano, através da palavra, ela nasce com vocação para conjurar a violência.
O Eu se constitui em uma dimensão traumática com o reconhecimento da incompletude e da falta. A sociedade é fundada às custas do assassinato do pai da horda, como descrito no mito em
Totem e Tabu (Freud, 1913). Logo, a civilização e o próprio Eu se construíram sobre um fundo de violência. Talvez por isso, a violência nos provoque uma sensação
unheimlich, o desconhecido que nos é familiar.
Nesta perspectiva, o abandono do narcisismo – ou melhor, a sua regulação – é fundamental para que se constitua a subjetividade e possibilite uma vida compartilhada. O convívio humano impõe limites às paixões e ao desejo. Das renúncias, restam as identificações que vão alimentar os ideais e impor as interdições.
Mas se os tempos atuais são ditos
narcísicos, se não se tolera a frustração e se a aspiração do homem contemporâneo é a auto-suficiência, isto o torna mais afeito à violência do que em outros tempos? O desamparo ontológico coloca-nos irrevogavelmente necessitados do outro. Este desamparo é a causa de todos os motivos morais; é o que nos impele para as relações e para o mundo.
O princípio fundamental da ética é a alteridade, o balizador dos relacionamentos humanos, é a não indiferença para com a diferença do outro. A falta de abertura para o
rosto do Outro, como refere Lévinas (2009), não é só empobrecedora; ela embrutece. Ela tira do homem a experiência de conviver, que é o fundamento da existência. A clausura narcísica incita a violência, e o pensamento se contrai em um círculo vicioso, alimentado pela ideia de eliminação do que é diferente. O trabalho permanente de reconhecimento da alteridade deve ser o
Kultuarbeit contemporâneo.
No
Mal-estar na Civilização, é descrita uma das observações mais contundentes de Freud (1930) sobre a violência. É onde ele refere que a relação dos homens com o seu próximo pode ser que este seja “não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo” (p. 133).
Esta forma radical do desprezo pelo outro, a crueldade e a destruição que pode ser exercida entre os homens, trazem impressa a marca da pulsão de morte e atestam o antagonismo incontornável entre sujeito e civilização. O não amansamento de Tânatos por Eros faz com que ecloda o primitivo que nos habita, sempre a espreita para mostrar a força de suas garras. Os efeitos de todo ato violento – seja por quem o pratica ou quem sofre – denuncia um fracasso da cultura.
O ato violento é uma marca sem palavras e simbolização. Assim, a violência está relacionada com o não-representado, fora do campo simbólico e se apresenta no real. Ela opera como um trauma desestruturante, como ruptura do tecido psíquico e do laço social. Essa impossibilidade de representação não permite dar sentido ao que é vivido.
No Brasil, a miséria endêmica e a exclusão social são uma forma pungente e gritante de violência. Atribui-se, superficial e inconsistentemente, o aumento da criminalidade e da delinquência à falta de punição, e não se considera o abismo da desigualdade social que separa a sociedade. É quando o
rosto do Outro se apaga. Temos uma população de
invisíveis que estão excluídos do social como sujeitos. É a
vida nua descrita por Agamben (2002).
Muitas vezes, os relegados à invisibilidade só são vistos pelo avesso: quando se tornam agentes da violência, e não se considera a violência que lhes foi infligida historicamente. Talvez esta forma de tratar as desigualdades seja remanescente do colonialismo que permanece até hoje como uma herança atávica no contexto sociopolítico do Brasil.
Ocorre, desde a nossa origem, a mistura de público e privado, do social e do individual. Esta condição, descrita originalmente em 1936, por Sérgio Buarque de Holanda (2016), em seu livro
Raízes do Brasil, permanece atual. As atitudes da classe política são pródigas em exemplos de indiscriminação do público e privado. Estar acima da lei, a apropriação do bem público e o abuso do poder são o gérmen daquilo que pode resultar em violência. Temos uma dívida histórica que precisa ser encarada. Os esforços transcendem as políticas públicas de inclusão. Não é só uma questão do Estado; é uma responsabilidade da sociedade, de todos.
Vivemos um momento no qual as incertezas provocam uma instabilidade e uma angústia paralisante que impede o pensamento reflexivo, deixando o sujeito a mercê das paixões. Esta vulnerabilidade aumenta a potencialidade de atos violentos. Quando a cidadania está agredida, e as instituições corroídas, o descrédito denuncia o vazio da autoridade. A decepção e o desmoronamento dos ideais reeditam o desamparo.
O grande perigo que nos ronda é o da banalização da violência. É, então, fundamental que não percamos a capacidade de nos surpreendermos e nos indignarmos. Desconsiderar a dor do outro é a inumanidade. Este é o estado mais arcaico do psiquismo: a indiferença.
A violência também apresenta seus paradoxos, pois pode igualmente ser pensada a partir da ideia de intensidade presente na dialética da criação e da destrutividade. Para que o novo surja, é preciso destruir o já existente. Neste sentido, a violência se apresenta no jogo pulsional. Ela é perturbação, é o que rompe com uma ordem estabelecida para a emergência do novo. Nesta ótica, a violência está inserida em um outro contexto, como uma espécie de condição necessária para a inovação e para o surgimento do diferente; é a positividade da negatividade.
É preciso fazer o luto dos ideais e ideias que se foram e suportar estes tempos turbulentos. Senão, corremos o risco de ficar em uma paralisia melancólica, sem saber
o que perdemos naquilo que perdemos. Novas formas de política, novas regras para regular as interações humanas, novas representações, novas palavras devem surgir para ocupar o vazio de nosso tempo. Caso contrário, ficaremos cada vez mais expostos às exigências de satisfação direta e imediata, ao gozo não interditado.
É como no verso do poeta: “Você marcha José! José para onde?” (Drummond de Andrade, 1942).
As palavras são o recurso privilegiado do humano para o entendimento. Ela é o
gesto que nos humaniza. Essa aposta na palavra passa pelo reconhecimento das ambiguidades e das contradições inerentes às relações humanas. A escuta do diferente é o que permite problematizar os acontecimentos. Sem esta possibilidade, permanecemos no território imaginário das certezas e das crenças, que pertence ao campo narcísico. É imprescindível que se estabeleçam parâmetros mínimos para que haja um entendimento, o que supõe algo de renúncia.
Esta é a condição para a vida em comum. Entretanto, alguém poderia objetar que, hoje, todos podem falar e se manifestar livremente, o que pressupõe um maior entendimento e eficácia da palavra. Mas a liberdade de opinião parece estar restrita ao grupo ao qual cada um se sente filiado, o que revela a falta de liberdade para a expressão de ideias sem o constrangimento de ser atacado. Cada grupo vê no outro um inimigo a ser combatido. Todos se sentem convictos de suas posições.
O
narcisismo das pequenas diferenças mostra-se com toda sua intensidade. As manifestações de ódio e agressão apresentam-se sem pudor no cotidiano. A intolerância cega à opinião do outro vence o argumento e se apresenta no discurso apaixonado.
Cada um faz uso dos termos para uso próprio. Não há uma correspondência compartilhada dos conceitos como os de justiça, lei e ética. Todos invocam os mesmos termos, mas a polissemia característica da palavra atingiu níveis de distorção que impedem um diálogo racional e isento. Quando se suspende a linguagem, o que orienta o pensamento é a violência, e o que se perde é o valor intrínseco da palavra. Quando ela degenera em insulto torna-se uma descarga em ato.
Contudo, para que o diálogo se instale, é necessário que haja uma abertura para o outro. O que assistimos atualmente é que a tensão destes tempos se apresenta, entre tantas formas, como violência verbal. Isso, em si, pareceria contraditório, pois a palavra é por princípio um elemento pacificador, é o que se interpõe ao ato.
Atualmente, somos afetados por uma avalanche de estímulos, sem o tempo necessário para a internalização, de modo que o processamento do vivido não se transforma em capital psíquico. É o “infarto da alma” (Han, 2015). O excesso de comunicação, de informações e de imagens acaba provocando situações desorganizadoras, invasivas e paralisantes da capacidade de pensar, como um trauma que o Eu não é capaz de assimilar.
A construção de uma narrativa é uma forma de enfrentar o tempo coagulado do trauma; é torná-lo representável, nomeado, inserido no tempo histórico do sujeito.
Contudo, Mia Couto (2011) alerta: “A palavra de hoje é aquela que cada vez mais se despiu da dimensão poética e que não carrega nenhuma utopia sobre um mundo diferente”. Então, ele segue: “Quem vive num labirinto tem fome de caminhos” (Mia Couto, 2011, p. 130), mostrando que, quem sabe, o resgate da dimensão poética da palavra aponta um caminho... Neste resgate, temos a poesia, temos a arte, temos a democracia, temos a Psicanálise, para nos fazer seguir pensando...
REFERÊNCIAS
Agamben, G.
Homo Sacer. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
Han, Byung-Chul.
A sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
Couto, Mia.
E se Obama fosse africano? São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Drummond de Andrade, Carlos.
Poesias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1942.
Freud, Sigmund (1913). Totem e tabu. In: _____.
Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 12.
Freud, Sigmund (1930). O mal-estar na civilização. In: _____.
Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 21.
Holanda, Sérgio Buarque.
Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
Lévinas, Emmanuel.
Humanismo do outro homem. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
Novaes, Adauto.
Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo. São Paulo: Edições SESC, 2008.