Um fantasma chamado vazio

Ricardo Velasco Rosas
 

Quando o assunto é invadido por esse fantasma , a complexidade da sua mente se transforma e começa um fascínio para a simplificação, a apatia e do trabalho psíquico nulo.

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“Meu coração esvazia-se sem querer, como um balde roto. Pensar? Sentir? (…) Sou uma prateleira de frascos vazios”
(Fernando Pessoa, In.: Livro do desassossego)

 
Vivemos tempos intempestivos. As mudanças vão se acumulando uma a uma e a observação do que acontece em uma consulta psicanalítica não é exceção. Mudaram os fatos e mudaram também os vértices para os observar. 

Já não se tratam de tempos de entidades monolíticas, de “egos” livres de conflito ou de “ides” que apenas pulsam torpemente. As paredes estruturais do aparelho psíquico flexibilizaram-se até se tornarem porosas, e hoje encontramos cesuras e hiatos próprios de uma arquitetura psíquica pós-moderna.

Funcionamentos mentais coexistem, sobrepõem-se suas partes neuróticas e psicóticas, os princípios do psíquico regulam-se segundo as exigências internas e as demandas externas. Círculos retroativos entrelaçam-se, rizomas corpo-mente combinam-se, partes vivas e não vivas retroalimentam-se aleatoriamente em um mosaico heterogêneo que dificulta qualquer impressão diagnóstica.
São tempos hipermodernos e a psicanálise evolui sob o abrigo protetor do pensamento complexo: tornando complexo o pensamento, tornamos complexo o inconsciente e tornamos complexa nossa disciplina. Edgar Morin (1990) defendeu que a patologia da ideia é a ideologia, e que não há pior ideologia que o império da simplicidade, pois o reducionismo pretende aniquilar, com algumas frases feitas, a complexidade de um fenômeno.

O inconsciente não está isento de simplificação, de modo que precisamos de modelos complexos para entender a psicopatologia de nossa era. O que acontece com o sujeito atual? Que modelos surgiram para escutar sua demanda? Quais fantasmas perseguem o paciente de nossa era? Autores de distintas regiões e escolas psicanalíticas (Bollas, 1987; Green, 1995; Recalcati, 2003, Ogden, 2003; Lutenberg, 2007) coincidem ao destacar a presença cada vez maior de situações nas quais predomina a clínica do vazio, da ausência e do negativo. Aparecem em nossos divãs personagens que, no dilema hamletiano, escolheram o “não ser”, privilegiando o vínculo com o objeto ausente em detrimento do objeto presente.

Os diferentes modelos desta clínica permitem que nos aproximemos deste fantasma chamado vazio. O vazio que sempre esteve ali, mas de cujas manifestações não nos ocupávamos por falta de modelos conceituais e de estratégias técnicas desenhadas para abordá-lo. Um exemplo simples disso é quando um paciente não comparece à sessão; a sessão passa a existir no “negativo”, como sessão “em branco”, que pode ser preenchida com conjecturas imaginativas sobre o porquê de sua falta.

Os modelos contemporâneos permitem e demandam o paradoxo de que não estar presente também é digno de ser pensado, de que o silêncio comunica tanto quanto a palavra, de que o não ser, ou o não estar, é também uma forma de existir e de comunicar. O fantasma do vazio apresenta-se sob essa lógica do ausente que, como o fantasmático literário, está sempre ligada ao espectro de um que ser que não está mais presente. No entanto, na literatura psicanalítica é difícil pensar no “vazio”. Em parte, porque nos causa angústia experimentar a presença do ausente, mas também porque os fenômenos do vazio repousam em uma verdade fora da lógica imperante, a saber, a lógica do irrepresentável. Talvez esta piada nos ajude a entender:

Um homem entra em um restaurante e diz ao garçom: “Jovem, poderia me trazer um café sem chantili, por favor? ” O garçom responde-lhe: “Desculpe, senhor, acabou o chantili, posso lhe oferecer sem (without) leite? ” (Zupancic, pag. 81).


O vazio tem uma existência sinistra e, portanto, fantasmagórica. A manifestação do ausente é regida por um princípio silencioso e neutro, por “outra lógica”.  Continuamos a viver no domínio da palavra, da representação, do retorno do reprimido, e isso nos ocupa excessivamente. Mas na clínica de hoje, muita matéria psíquica não retorna, porque nunca “esteve ali”. Trata-se de um tipo de inconsciente que nunca teve o privilégio de ser consciente, nunca foi reprimido; é o inconsciente não reprimido, tão citado atualmente. Trata-se de uma matéria psíquica que não retorna, mas torna-se ato, não se representa, apresenta-se. E se apresenta na forma de psicologia inversa, a saber, no “negativo”, como mostrou Green (1995) ou no “virtual”, como propõe Lutenberg (2007).

Que consequências tem a clínica do vazio no paciente atual? Acredito que todos os autores coincidem na compreensão de que onde rege o fantasma do vazio, há partes da mente que nunca evoluirão. Se quisermos pensar sobre isto a partir da segunda tópica, seguindo o modelo de Green (1995), ou de Lutenberg (2007), a consequência é que o “ide” não se torna “ego”, de tal forma que “onde havia ide prevalece o vazio” - o que é preocupante não apenas porque essas partes não “se tornam” ego, mas porque elas não visam a se tornar.

Não é pouca coisa que o “ide” resista a se tornar “ego”, uma vez que isso implica a ideia de que um “ide” que, além de ser um reservatório pulsional, é uma instância que padece de um conflito, resiste a algo, não quer ser modificada. E como se manifesta a resistência do ide? Em primeiro lugar como resistência à complexidade da vida mental. A mente governada pelo “fantasma do vazio” se nega a ser mais sofisticada, a diversificar-se, a complexificar-se. Em suma, o fantasma chamado vazio é uma doença contemporânea caracterizada pela resistência à complexidade e pelo consequente apego fanático ao simples. O simples é o neutro, no qual a ligação não se faz necessária. Talvez Bion (1957) pudesse tê-lo chamado de “a insuportável estupidez da onisciência”.

A partir dos modelos contemporâneos da “clínica do vazio”, entende-se que a mente que goza de uma boa “condição psíquica” está disposta a trabalhar tornando complexos os eventos emocionais da vida. Entendo, assim, que complexidade é antônimo de vazio, ou, dito de outra maneira, que vazio é sinônimo de simplificação mental. A força do fantasma vazio radica na atração da simplicidade. A mente que sofre do “fantasma do vazio” tenderá a simplificar os sucessos da vida mental como se tudo fosse igual e como se nunca acontecesse nada novo, como se tudo terminasse em uma ideologia imperante, em uma “ideia máxima” (Sor y Senet, 2014), na qual desaparecem os matizes; tudo é branco.

A clínica do vazio implica um paradoxo: o vazio é um repleto de nada, uma pseudossensatez, um estar doente de “normalidade”. Nela tratam-se sujeitos hiperadaptados (Lutenberg, 2007), normóticos (Bollas, 1987), ou brancos (Green, 1986), que se escondem atrás de uma pseudoestruturação psíquica.
A vida regida pelo vazio se torna uma vida monocórdica, a-transformativa, na qual se é nada e, portanto, nada se é. Esses mal-estares descritos pela clínica do vazio coincidem muito bem com as ideias do filósofo contemporâneo Byun-Chul Han (2012, 2014), que fala da era atual como uma “sociedade do cansaço”, que sofre a “agonia de Eros”.

Han afirma que a era contemporânea é uma “era do cansaço”, na qual o trabalho deixou de ser o motor da vida, e, sem trabalho, aniquila-se também o conflito. O trabalho é substituído pelo cansaço, pela fadiga. O filósofo propõe uma leitura da sociedade atual em dois níveis: no manifesto, em que há muito trabalho por fazer (ser é fazer, ser é ser eficiente, ser é ser multitask), e no latente, no qual não há trabalho psíquico, o ser trabalha como autômato, sem emoção, puro ato sem pensamento.

O esforço da Era Industrial moderna, que se recompensava pelo reconhecimento e pelo bem-estar, é substituído pela apatia psíquica. Dado o fracasso do modelo econômico imperante, nenhum trabalho recompensa o órfão mental, nem o socialmente esquecido: os miseráveis da pós-modernidade. 
O sujeito contemporâneo é um sujeito fatigado, que sofre de uma metafórica dor de “fígado”, segundo Han. Em suas palavras: “A dor de fígado que em si é indolor, é o cansaço. Desta forma, como sujeito de autoexploração, torna-se presa de um cansaço infinito. É a figura originária da sociedade do cansaço” (Han, 2012).

O sujeito sofre de uma doença mental autoimune, sua mente cria sucessivas expectativas de desempenho, dirigidas a uma recompensa que jamais acontece, retroalimentando um constante interesse profissional, o próprio sujeito ataca seu sistema defensivo e acaba cansado de si mesmo.
É preciso deixar claro que o esgotado não é o deprimido; a depressão exige um trabalho, inverso ao trabalho do luto, mas ainda assim trabalho. O esgotado, ao contrário, não trabalha mais, não se recrimina, não se culpa, não se lamenta, simplesmente se esgotou. Como se deixasse de ser um sujeito desejante, não luta pelo objeto ausente nem pelo presente, não luta, esgota-se. Eros agoniza (Han, 2014).

O esgotado também não faz o trabalho do sonho, qualquer trabalho mental fica proibido, a mente adiantou-se vários anos até seus dias de aposentadoria, sem prestar-se mais que ao “descanso” na vida. O sujeito já não se ilude com um projeto futuro, não sonha, é o paciente insone de Ogden (2003).
Como acordar um esgotado? Como induzir o amor ao trabalho psíquico? Como trazer de volta a paixão pelo complexo? Como vencer o fantasma chamado vazio? Esse é o objetivo do analista contemporâneo, nosso objetivo. Quando a patologia do vazio chega ao consultório, pode parecer que o único vivo é o analista, o único pensante, o único sonhante e, tristemente, o único trabalhando. “Desculpem o inconveniente, psiquismo trabalhando”, deveria alertar um aviso ao paciente tomado pelo fantasma do vazio.

O analista tem como recurso recorrer a sua experiência de análise, a seu “Eros tecelão” (Botella, 2003), a seu “enquadre interno” (Green, 2005), a seu amor pelo método (Bion, 1970). Seu método introjetado serve como mastro ao qual se ata, como Odisseu, para não sucumbir ao canto das sereias. Nada seria mais fácil que se cansar também, nada mais simples do que deixar de pensar, nada mais óbvio que matar o complexo.

O analista contemporâneo teima em estar vivo e manter-se pensante apesar de tanta morte e de tanto antipensamento. O analista tece a madeixa desse “quase nada” e quando necessário traz fios de sua própria malha, como no trabalho de figurabilidade (Botella, 2003). Esta trama formará os fios de Ariadna que, entrelaçados, permitirão que ele construa um primeiro esboço de um útero mental (Lutenberg, 2007), o primeiro móvel de um sonho, a primeira letra de uma palavra, o primeiro sinal de uma emoção, graças ao fato de o analista, em sua formação, ter incorporado o amor pela verdade inconsciente.
O analista, com esses pacientes, deve ser o nada, encarnar o vazio? De algum modo ele o encarna, pois terá mais do que nunca que adotar uma “capacidade negativa” (Bion, 1970). Ou seja, terá que tolerar seu não saber, seu não desejar, seu não memorizar, “convidando de fato o vazio a sua mente, pois tem fé na sabedoria do inconsciente” (Velasco, 2014, pág. 42).

A batalha do analista contra esse fantasma chamado vazio não consiste em desvendar um conteúdo recalcado, mas em construir um continente; o objetivo último é a criação “do verbo”, a construção de um processo, de um trabalho mental, de um modo de vinculação, que é o que essencialmente vence o fantasma: o reencontro com a complexidade da vida mental e vincular, graças ao fato contundente de que uma mente -a do analista- conseguiu continuar pensando e sentindo seu paciente. Este é o único antídoto contra o cansaço mental.

O fantasma do vazio, gerado nas origens psíquicas do sujeito pela ausência de uma pessoa que o pensara e sentira, apenas pode ser revertida com o olhar de outro ser vivo, pensante e sensível, que foi, por sua vez, pensando e sentido: o que o humano impediu, apenas outro humano pode construir.

Referências bibliográficas:

  1.  Edgar Morin (1990) Introducción al pensamiento complejo. Gedisa. Barcelona.
  2. Christopher Bollas (1987) La afección normótica. En: “La sombra del objeto: psicoanálisis de lo sabido no pensado”. Amorrortu. Buenos Aires.
  3. André Green (1995) El trabajo de lo negativo. Amorrotu. Buenos Aires.
  4. André Green (1986) Narcisismo de vida, narcisismo de muerte. Amorrortu. Buenos Aires.
  5. André Green (2005) Ideas directrices para un psicoanálisis contemporáneo. Amorrortu. Buenos Aires
  6. Cesar y Sara Botella (2003) La figurabilidad psíquica. Amorrortu editores. Buenos Aires.
  7. Massimo Recalcati (2003) Clínica del vacío: anorexias, dependencias, psicosis. Síntesis. Madrid.
  8. Thomas Ogden. (2003) On not being able to dream. International Journal of Psychoanalysis. 84: 17-30.
  9. Jaime Lutenberg (2007) El vacío mental. Publicaciones Psicoanalíticas. Lima.
  10. Alenca Zupancic (2013) La comedia y lo ominoso. En: “¿Porqué el psicoanálisis?”Paradiso. México D.F.
  11. Wilfred Bion (1957) Sobre la arrogancia. En. “Volviendo a pensar” (1993). Lumen.Buenos Aires.
  12. Wilfred Bion (1970) Atención e interpretación. Paidos. Buenos Aires.
  13. Darío Sor y María Rosa Senet (2010) Fanatismo. Biebel. Buenos Aires.
  14. Byung-Chul Han (2012) La sociedad del cansancio. Herder. Barcelona.
  15. Byung-Chul Han (2014) La agonía de eros. Herder. Barcelona.
  16. Ricardo Velasco (2014) Miedo a vaciarse como angustia posmoderna. En:“Senderos del inconsciente: hoja de ruta de un psicoanalista”. Paradiso. México,DF.

 
Tradução: Ana Tanis

 

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