A moral começa a partir da instauração de certos tabus, tal como estabelece Freud? Se o tabu do incesto foi pensado para impedir a agressão entre os seres humanos, ele serviu para realizar esse propósito? Este trabalho surgiu a partir dessas questões que nos ocorreram ao ler Totem e Tabu, de S. Freud. Esperamos que os possíveis leitores se aproximem deste texto com uma atitude de benévolo ceticismo.
Freud disse em: O retorno infantil ao totemismo. (Cap. V de Totem e tabu): ‘Os dois tabus do totemismo, com os quais se inicia a moral humana [...]
A primeira pergunta que nos ocorre é se a moral humana começa com a implantação de tabus e, ampliando a pergunta, acaso o resto dos seres vivos não possuem um sistema moral?
O termo ‘moral’ deriva do latim: mos, costume, o mesmo que ‘ética’, do grego ἡʋoς: [1] e, por isso, ‘ética’ e ‘moral’ são empregadas indistintamente. Como disse Cícero, (De fato I,1), ‘já que se refere aos costumes, que os gregos chamam ἡʋoς, nós costumamos chamar esta parte da filosofia de uma filosofia de costumes, mas convém enriquecer a língua latina e chamá-la de moral’.
Se, por moral, entendem-se os usos e costumes de um grupo determinado, deve ter existido uma moralidade, inclusive entre os seres vivos não humanos, anterior à instauração do sistema totêmico; todo ser vivo se desenvolve em comunidade e produz modos peculiares para se relacionar. Muito depois dos gregos, os primeiros filósofos cristãos fizeram a moral depender de princípios religiosos.
Freud continua:
[...] não têm igual valor psicológico. Só um deles, o respeito ao animal totêmico, se baseia nos motivos afetivos; o pai foi morto e, praticamente, já não existe nada que se possa fazer. Por outro lado, o outro tabu, a proibição do incesto, apresenta também uma grande importância prática. A necessidade sexual, longe de unir os homens, os divide. Os irmãos, associados para suprimir o pai, tinham que se converter em rivais quando se trata da posse das mulheres. Cada um teria desejado ter todas para si, a exemplo do pai, e a luta geral que tivesse resultado de tudo isso, teria trazido consigo o naufrágio da nova organização. Nela já não existia nenhum indivíduo superior aos demais por seu poderio, que fosse capaz de assumir com êxito o papel de pai. Assim, uma vez que os irmãos queriam viver juntos, a única solução que lhes restava – depois, talvez, de ter superado grandes discórdias – era instituir a proibição do incesto, com a qual todos renunciavam à posse das mulheres desejadas, motivo principal do parricídio.
‘O prático’[2] é aquilo que é adequado para uma transação ou negócio, o que é efetivo na práxis. O prático se refere às ‘coisas práticas’, e trata dos ‘assuntos’, considerando-os como ‘assuntos humanos’ em geral. A prática se distingue da teoria, mas isso não quer dizer que não haja possibilidade de um saber prático. A rigor, segundo Aristóteles, pode-se falar de três classes de saber: o saber teórico, o saber prático e o saber ‘poético’. O segundo tem por objeto a ação, especialmente a ação moral (que, para Aristóteles, também é ‘política’); o terceiro tem por objeto a produção. Pode-se dizer que o saber prático não é uma ciência, apenas uma ‘sabedoria prática’, cuja finalidade é alcançar o bem comum e a felicidade de cada um dos indivíduos da comunidade. Pode-se dizer que a ‘sabedoria prática’ – diz respeito ao indivíduo; e que a ‘sabedoria política’ – diz respeito à comunidade. A diferença entre ‘prático’ e ‘teórico’ em Aristóteles não é taxativa; existem princípios teóricos e princípios práticos. Para Kant, ‘O prático’, que é sensivelmente idêntico ao ‘moral’, se diz de tudo o que convém ao livre arbítrio, enquanto livre arbítrio de uma vontade determinada, independentemente dos impulsos sensíveis. Esta vontade está determinada pela razão, e cabe à ‘razão prática’ determinar como deve ser uma conduta racional, ‘moral’.
Se o imperativo categórico kantiano se baseia em princípios racionais, nos perguntamos: onde está o totemismo? Se um princípio tem uma importância prática, quer dizer, se possui uma importância para alcançar o bem comum, segundo Aristóteles; se obedece ao livre arbítrio, segundo Kant, por que a proibição do incesto deveria ser um tabu? Uma finalidade prática, não tem porque ser reprimida, se isso é reprimido, é porque existe um tabu; o tabu é, assim como o sintoma, uma transação entre um desejo reprimido e a repressão.
Freud, na parte final de Totem e Tabu, repete que o ético se baseia em parte nas necessidades objetivas da sociedade fraterna e nas reparações exigidas pela consciência de culpa, mas esclarecerá em seguida que, como consequência de importantes mudanças culturais ocorridas ao longo da história da humanidade, a igualdade democrática entre os irmãos não pôde se sustentar. O pai totêmico foi elevado à categoria de deus até que, no cristianismo, o filho é sacrificado e, por sua vez, torna-se ele mesmo um deus e simultaneamente se produz a total renúncia à mulher que era a causa de se terem revoltado contra o pai, a religião do filho substitui a religião do pai; então, é aqui que a finalidade, prática em sua origem, torna-se tabu.
A proibição do incesto serviu ao propósito de unir os seres humanos? A finalidade prática teria de levar a paz entre os seres humanos (não há como negar que existindo paz também há libido). Concordamos com Arnaldo Rascovsky: o parricídio continua ocorrendo deslocado para o filicídio quando mandamos nossos filhos para a guerra; justifica-se então o tabu do incesto?
A história das circunstâncias que levaram à instauração dos tabus e que determinaram que se transmitissem geneticamente merece ser discutida. A moral é a expressão da libido, que depois será Eros. Se na horda primitiva houvesse predominado somente a agressão, a espécie humana não teria sobrevivido. Junto com a agressão, necessária para a transformação da natureza, adequada para a sobrevivência da espécie, os instintos de autoconservação e os sexuais são os que levaram a cabo as ações específicas para conseguir essa sobrevivência. Os tabus devem ser substituídos por princípios éticos, sustentados pelo princípio da realidade.
[1] Dicionário de Filosofia de José Ferrater Mora.
[2] Extraído com modificações do Dicionário citado.
Tradução: Marilei Jorge